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Impressões de Primavera

Nove da manhã de domingo. Não me apetece pedalar. Aborrece-me todo o protocolo necessário a uma saída, que hoje, irá ser curta. Calço as botas de caminhar. A minha negra amiga de quatro patas, Luna, já está com as orelhas no ar. Antecipa instintivamente um longo passeio a pé comigo. Está um dia fenomenal. Convido o filho, que está a jogar no computador, para me acompanhar. Diz que não lhe apetece. Vai arrepender-se daqui a cinco minutos. Sai disparado do escritório a perguntar por mim à mãe. Vem à rua chamar-me …mas é tarde. Já não me encontro ao alcance das suas ondas sonoras. Acompanha-me o som dos andróginos Placebo. No viaduto sobre a A25, na Rasa, sorrio ao ser cumprimentado, e devolver o cumprimento, a três giríssimas Vespas e respetivos tripulantes, quais anões assustados pelos camiões que os obrigam a abanar à sua passagem. Eles lá seguem, mesmo assim, divertidos, com mochila e bandeira portuguesa, para um qualquer encontro internacional. Corto à esquerda logo a seguir e apanho o caminho de terra que me levará em direção à Cabreira. É um parte pernas. A Luna, sempre absorvida pela miríade de odores, ora fica para trás, ora avança mas nunca me perde de vista. Já sabe o caminho e apenas olha para trás para confirmar comigo se vai na boa senda. Atravessamos, cuidadosamente, a linha. Na subida para a Cabreira somos recebidos por alguns caninos. Já estamos habituados. Eles ladram e nós passamos. Dentro da aldeia, deserta, o primeiro abastecimento de água para ela. Uma centenária vereda ergue-se à minha direita. A Junta limpou-a de mato há uns anos, mas já está a precisar outra vez. Levar-nos-á ao Carapito. Até agora uma nota comum: terras por cultivar e mato, muito mato. As gramíneas pululam gigantescas. O tempo, até agora, húmido não augura nada de bom para um Verão que, há décadas, se pretende sem fogos mas que, invariavelmente, vai ser de aflição, destruição e morte. Atravessamos o Carapito e seguimos pela vereda que liga à escola primária do Rio Diz. Está quase intransponível, pelo que opto por seguir por um terreno adjacente. Chegados à estrada atravessamos para a abandonada fábrica Tavares, junto à qual uma família cigana vive em condições miseráveis. As crianças temem a Luna. Digo-lhes para não terem medo. Na passagem sobre o Diz próximo da escola de S. Miguel, este vai, estranhamente, mal cheiroso e turvo. De onde provirá o foco de poluição? Chegamos ao parque urbano, vulgo, Polis. Está transformado. Uma parafernália de objetos militares como, tendas de campanha, um avião, um helicóptero, um tanque, uma chaimite, um monstruoso veículo de combate a incêndios em aeroporto, Hummers, Land Rovers (claro), povoam o espaço. A esta hora muita gente anda por ali. As estrelas da companhia são o F16, o Heli e o tanque. Interrogo-me acerca dos custos de tamanho dispositivo. Tenho sentimentos contraditórios. A verdade é que à Guarda já lhe faltava um pouco de agitação, o que tem custos, claro. Provavelmente os mesmos serão imputados ao Estado, na sua grande maioria e à autarquia uma fração dos mesmos, uma vez que a exposição faz parte das comemorações do dia de Portugal, de Camões e das comunidades portuguesas. A Guarda vai andar nas bocas dos media por estes dias. Pena é que, no final, não passe tudo de foguetório e, quando o circo nos deixar, continuará uma cidade de apartamentos fechados ou por terminar à espera de uma população em fuga para o litoral ou além fronteiras.

Atravessado o bulício, que pessoalmente não aprecio, e cumprimentados os amigos que vou encontrando, dirijo-me a casa para terminar esta revigorante e reflexiva caminhada. A minha companhia, estafada e sedenta, depois de beber, esparrama-se ao Sol para acabar a manhã em beleza. Apesar de tudo esta cidade ainda nos oferece uma qualidade de vida invejável.

Nota: Este artigo foi realizado um dia antes do 10 de Junho. O Luís pediu-me para o atualizar, o que farei. Comparativamente à visita do General Presidente em 1977, a visita do Presidente Economista e respetiva comitiva nem por sombras teve o mesmo banho de multidão, espontaneidade e genuinidade, sinal de que o povo está farto deles. Termino com uma palavra de apreço e orgulho para o neurocientista, e agora Comendador, Rui Costa, guardense de gema e filho do meu professor primário, pela merecida distinção.

Por: José Carlos Lopes

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