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Homenagem a António Lobo Antunes

Tudo indica que, à minha frente, jamais encontrarei António Lobo Antunes – a menos que o meu muito estimado amigo e Director da Biblioteca Municipal o traga um dia à Guarda e o meu serviço não me tolha a presença.

…O Director da Biblioteca Municipal ou qualquer outra entidade, camarária ou não, bem entendido. À atenção, também, do Dr. Fernando Carmino Pereira e seus pares!

Era absolutamente obrigatório comprar as Cartas da Guerra ( D’ Este viver aqui neste papel Descripto), que as duas filhas organizaram e a «Dom Quixote» editou. Curvo-me de gratidão perante todos os que estão por detrás da edição e, ao famoso romancista, a minha ainda mais funda homenagem por duas razões: pela genuinidade do conteúdo dos aerogramas; por também eu próprio ter estado na guerra, e em Angola.

O nível da Universidade lusa espelhado nos alferes; a incultura e/ou boçalidade da oficialidade de carreira (excepto, diz Lobo Antunes, Ernesto Melo Antunes); o ambiente dentro do quartel e a alienação do álcool e do tabaco, remédios puramente imanentes do puramente imanente, para superar – tanto quanto possível – a peculiaridade da situação; a insuperável idiossincrasia própria – unicidade – e a dramática nota de que, afinal, até os irmãos são muito diferentes uns dos outros; as dúvidas que qualquer homem impolutamente honrado (perdoe-se a redundância) sente; o papel como o genuíno alter ego, visto que não escrevemos a ninguém excepto a nós próprios; o carácter sui generis da colonização portuguesa; o não podermos, alguma vez – ou seja quando for – estar apaixonados por quem quer que seja, a não ser por nós próprios; o não existir qualquer tipo de explicação fora do espiritual; o sagrado carácter do sexo e da procriação; a identidade de Portugal, com Lisboa capital do Império, nas décadas de 60 e 70; a necessidade, para um espírito com o mínimo de clarividência, de ultrapassar as limitações dos “ídolos da praça”; a independência do espírito como único escoramento para a mais alta auto-estima; a tremenda dificuldade de comunicarmos com o outro se o nosso patamar ficar aquém do espiritual; as feridas da guerra; o haver situações em que não há qualquer hipótese de companhia, excepto do próprio pelo próprio; a arte “uma imitação da vida”; a leitura de tudo o que aparecesse, nem que fossem foto-novelas brasileiras; a estaleca psíquica para certas emoções; a multi-racialidade física fotografada para a posteridade; a leitura do correio da cônjuge “como quem reza”; a impressionante premonição dos sonhos; a saudade lusa; a insuportável mediocridade dos suplementos literários então publicados na Metrópole; a beleza do cabelo e do pescoço femininos; ser “humilde diante do próprio orgulho”; o apreço pela música e escultura indígenas; a perfeita possibilidade de uma “comunidade pluri-racial”; o pudor dos vestidos do século XIX; a beleza do Amor e o amor da Beleza; etc, etc, etc.

Quando o livro surgiu tornou-se-me imperativa a compra. Na casa dos vinte anos não se pode esperar de ninguém excepcional profundidade. Ademais, o cosmopolitismo europeu não estava apenas muito longe (a CEE, na sequência da CECA, vê a entrada do Reino Unido só em 1973). O cosmopolitismo, dizia, estava nos antípodas. Mas Lobo Antunes provou que, já com essa idade, tinha numerosos ingredientes de grandeza.

Aos prenhes de preconceito esta emocionante obra que dirá? Todavia, para os humildes, que querem saber e são dotados de inteligência emocional, é absolutamente obrigatória. Tal qual para os que de lá vieram escorraçados, em condições absolutamente humilhantes, e a quem devemos, inclusive, que o Português seja um dos mais falados idiomas do Mundo.

“Mas não estou arrependido de para aqui ter vindo” (p. 96). “A qualidade primeira de um homem é a coragem, e estou disposto a tê-la” (ps. 85, 86). Emocionante!!

A si, mulher intangivelmente bela e tão digna que sabe que o seu mais fundo interior é tão fabulosamente emocionante que intransmissível; a si, homem com a mais exponenciada auto-estima que consegue sempre tudo o que quer, porque sabe que o espírito é o concreto e o concreto o espírito; a ambos a obrigação de correrem a comprar o livro.

Guarda, 25 -VI – 06

Por: J. A. Alves Ambrósio

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