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Hipotecas

Depois da crise do sub-prime nos Estados Unidos, os bancos norte-americanos ficaram com milhões de casas e apartamentos nas mãos, entregues por proprietários impossibilitados de pagar as prestações. Aí chegados, os bancos viram-se obrigados, pela primeira vez, a analisar a situação com alguma objectividade, a que lhes tinha faltado aquando da concessão dos empréstimos, e concluíram algumas coisas: tinha-se construído demasiado, o valor nominal das casas era muito, mas mesmo muito, superior ao seu valor real, a perspectiva de vender ou arrendar as casas do seu agora vasto património imobiliário era praticamente nula. Entretanto, havia manutenção a fazer e impostos a pagar. A solução para este nó górdio foi o equivalente moderno à espada de Alexandre e os bancos assumiram a perda, mas evitaram que se agravasse ainda mais, ordenando a demolição de milhares de casas invendáveis.

A reportagem da New Yorker onde fui buscar esta história não contava, ou eu não a recordo, como recordo a imagem de máquinas a terraplenar urbanizações a perder de vista, a história dos milhares de americanos que tiveram de procurar outras paragens. É verdade que tinha por adquirido que a sua cultura de mobilidade os levaria com certeza a fixar-se noutros lugares e aí recomeçar do zero, mas havia ainda o problema do remanescente em dívida do crédito hipotecário.

Há o mesmo problema em Espanha e Portugal, e os respectivos governos procuram resolver o problema social daí decorrente sem, ao mesmo tempo, criar uma aberração jurídica. É evidente que se tem de manter a segurança oferecida para o credor por uma hipoteca, segurança que se perde parcialmente se essa hipoteca tiver de ser a única garantia do empréstimo, o que irá acontecer se se admitir indiscriminadamente a dação em pagamento do bem dado em garantia como forma de saldar unilateralmente a dívida. Se isto vingar sem mais, podem crer que o mercado do crédito irá fechar para toda a gente e por muito tempo.

Outra coisa é o que está a acontecer em Espanha, a abrigo de uma lei hipotecária antiga e desajustada: os bancos, em caso de incumprimento, podem forçar o despejo do devedor da casa dada em garantia; e se o devedor declarar insolvência, a exoneração do passivo restante (ou, em linguagem de gente, o perdão da dívida que o devedor não consiga saldar em cinco anos após a insolvência), que lhe permitiria um recomeço do zero (ou fresh start, como diriam os americanos), passado o prazo fixado pelo tribunal, não abrange as dívidas hipotecárias. Em Portugal, apenas as dívidas tributárias estão excluídas e não há despejo compulsivo até à venda do imóvel dado em garantia. É melhor, admitamos. Em Espanha, como reacção natural a uma lei iníqua, floresce agora a cultura dos okupas: os despejados procuram entre os cerca de dois milhões de fogos devolutos, construídos durante a voragem louca da bolha imobiliária, os mais luxuosos, ou menos vigiados, apartamentos e casas, e ocupam-nos. Não têm água nem electricidade, e muitos dos agora ocupantes não têm emprego nem perspectiva de o ter (digamos que por cada fogo devoluto há em Espanha pelo menos dois desempregados), mas pelo menos têm um tecto. Isto enquanto os bancos não começarem a terraplenar.

Por: António Ferreira

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