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Guincho, o cão-terapeuta

A Misericórdia do Fundão, em parceria com o Canil d’Alpetratínia, está a desenvolver o projeto “Cãotigo Sempre” para estimular os seus utentes

Terça-feira é o dia do Guincho visitar as instalações do Lar Nossa Senhora de Fátima, na Misericórdia do Fundão. Já ninguém estranha a chegada do cão Serra da Estrela que, durante três meses, tem sido o estímulo terapêutico de um grupo de seis utentes com sintomatologias demencial e depressiva em fase inicial. Com idades compreendidas entre os 49 e 88 anos, estas pessoas já passaram por muitos sítios, mas hoje a sua casa é a Misericórdia e o Guincho o seu melhor amigo.

Criado em dezembro do ano passado, o projeto-piloto “Cãotigo Sempre” surge do interesse de Sara Alvarinhas, psicóloga clínica na instituição, e de João Silvino, criador de cães e proprietário do Canil d’Alpetratínia, em explorar a terapia assistida por animais. «Começámos com uma atividade assistida por um animal, mas que funcionava como atividade ocupacional, ou seja, não tinha finalidades terapêuticas propriamente ditas. Após essa experiência decidimos então partir para um projeto mais coerente e estruturado, com uma finalidade terapêutica, e foi aí que surgiu o “Cãotigo Sempre”», adianta Sara Alvarinhas. As sessões têm a duração de uma hora e em todas o Guincho é o estímulo central. Desde a orientação espácio-temporal à ativação de memórias, passando pela componente relacional, emocional e comunicativa, são várias as áreas trabalhadas todas as terças-feiras.

A psicóloga clínica refere que «ainda que estejamos numa fase inicial, os resultados têm sido muito positivos, nomeadamente na componente emocional», acrescentando que «os pacientes estão mais desinibidos, com um humor mais alegre, e estão sem dúvida mais comunicativos». Um progresso que antes parecia ser inalcançável, quando estas pessoas se resguardavam no seu mundo. A dona Maria – nome fictício – é o exemplo vivo de como o Guincho tem mudado a vida destas pessoas. A utente, de 84 anos, apresenta um estado de demência muito mais avançado do que os restantes elementos do grupo e, como tal, a terapia é feita individualmente. De acordo com Sara Alvarinhas, «trata-se de uma paciente que, geralmente, não reage com as outras pessoas, não comunica, e quando o Guincho entra na sala é ativado um estímulo, uma relação com o cão que nós não observamos em mais nenhuma ocasião».

Trata-se de uma senhora que viveu durante muitos anos em contexto rural e que, segundo a psicóloga clínica, «na presença do nosso amigo terapeuta ativa memórias do passado que tem relacionadas com cães e começa a falar com ele», revela a responsável. Hoje, passados três meses, o Guincho é visto por aquelas pessoas como um membro da família. «Posso dizer-lhe que o Guincho foi pai há pouco tempo, nós comunicámos isso em sessão e os nossos utentes vivenciaram o nascimento daqueles cachorros como se tivesse sido uma coisa que ocorreu na família», revela Sara Alvarinhas. Segundo a técnica, «acaba por ser muito engraçado porque eles perguntam ao cão como estão os filhotes», acrescentando que os pacientes «têm um carinho e uma relação muito especial com o animal e por eles o Guincho vivia na instituição… Acho que isso seria um projeto que adorariam pôr em prática».

Levar o projeto a mais associações

Para integrar estas sessões o cão tem que ser, acima de tudo, equilibrado. Quem o diz é João Silvino, tratador de cães e proprietário do Canil d’Alpetratínia.

«Dependendo do objetivo e dos trabalhos que se pretendam fazer, há cães mais interessantes do que outros. Neste caso, o Guincho, por ser um Serra da Estrela, é um animal mais independente e intuitivo, ou seja, não está à espera que lhe digam o que fazer», explica. Segundo o responsável, «podemos falar em diferenças genéricas em termos de raça, de grupos comportamentais, mas sem dúvida que, quando se chega a este nível de intervenção, a particularidade de comportamento e do equilíbrio da sensibilidade individual do cão é mais importante do que pertencer à raça x ou y». João Silvino, que acompanha o projeto desde o início, recorda um episódio especial que o marcou: «Vou falar não do Guincho, mas da Jasmine, uma cadela que, entretanto, já morreu e que participou na primeira sessão. Nós entrámos na sala e a cadela foi cumprimentar de forma individual cada utente. Nesse momento, para nosso espanto, houve três ou quatro pacientes a quem ela não se dirigiu». O tratador refere que só depois vieram a saber que tinham sido as pessoas que manifestaram resistência à atividade.

João Silvino lembra ainda que o pretendido é «em cada sessão retirar o rendimento máximo do potencial do cão, tendo sempre em atenção se ele está confortável e a gostar do que está a fazer». Para exemplificar, João Silvino diz, em tom de brincadeira, que o Guincho, que antes gostava pouco de andar de carro, a partir do momento em que começou a participar neste tipo de intervenção «até já entra para o carro sozinho». Tendo em conta os resultados positivos que têm sido alcançados – e caso assim continue –, o objetivo dos intervenientes é alargar o projeto. «O que pretendemos é levar este projeto a outras valências não só desta instituição, mas também de outras associações que possam estar interessadas neste tipo de terapia», afirma Sara Alvarinhas. Por agora, após mais uma semana, os utentes do Lar Nossa Senhora de Fátima anseiam que chegue a próxima terça-feira.

Sara Guterres Guincho é um Serra da Estrela com 12 anos

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