«Tinham dado explicações sobre a guerra que travavam mas ninguém percebera bem.»
(Pepetela, “Parábola do Cágado Velho”)
1. Ainda sob os ecos da dinamite de Oslo, fico a pensar no estrondo das bombas a cair ao nosso lado. Imaginar uma guerra dentro do nosso espaço desafia os limites da imaginação, mesmo num tempo em que todos os terrores nos chegam diariamente à mesma hora, suavizados pelo filtro da montagem televisiva. Adivinho que o ruído das bombas e o abalo que nos causariam vão muito para além do estrondo em “surround” estereofónico das novas salas de cinema, em que somos submersos por uma banda sonora envolvente e surreal.
Tenho medo da guerra sobretudo por esse barulho ensurdecedor das explosões. Mas o outro lado da guerra que mais receamos é a sua absoluta crueldade, desatada sem freios nem capacidade de pensar. Aceso o rastilho, o homem revela-se em toda a sua crueldade de mamífero predador. O mal dos dois lados.
A propaganda da guerra, reforçando a sua inevitabilidade, faz parecer em certos momentos que a guerra se constitui como algo de natural e que permite resolver nesses momentos bloqueios e impasses sem solução. Como se a natureza (e a sociedade) precisasse de explodir (de morrer) para voltar a ressurgir e crescer. Coisa à partida fácil de entender e “natural” no sentido mais genuíno da palavra.
2. Acabei agora de ler um livro com testemunhos dos ex-combatentes de Angola a propósito dos 50 anos do eclodir da guerra colonial em Angola (“A minha guerra – testemunhos de combatentes – Angola 1961 – 50 anos”, Ed. Presselivre). A crueldade de um lado e de outro aparece a cada virar de página: as chacinas de aldeias inteiras, a morte à queima-roupa, o terror das emboscadas, o sacrificar dos mais frágeis. E a imagem dos soldados portugueses em 1961 é a de carne para canhão numa guerra para a qual não estavam preparados, sem conhecimentos do terreno e dos procedimentos adequados, com mortes e mutilações ingénuas demais. Grande demais também a dor, que permanece ainda viva nestas pessoas, hoje na reforma, que tinham na altura como recompensa vir descansar uns meses para zonas de Angola sem guerra (centro e sul).
O acaso colocou-me também recentemente na frente, por razões diferentes, outra obra ligada à guerra angolana. Pepetela escreve sobre a guerra na “Parábola do Cágado Velho” (Ed. D. Quixote) e apresenta-a como algo de superior às vontades dos homens. Uma coisa quase tão natural em Angola como a fome. Os espíritos dos antepassados de tempos a tempos segredavam aos sobas a necessidade de conquistarem mais espaço. E vinham então as guerras tribais, entre vizinhos. Depois, num contexto de independentismo africano, foi a guerra entre brancos e negros a partir da década de 60. Finalmente, após o 25 de Abril, a guerra civil. A guerra faz parar a agricultura, o gado e o restante mantimento são roubados para a tropa e torna-se novamente necessário recomeçar, com pouca fé, às vezes noutro sítio que, mais cedo ou mais tarde, os soldados descobrirão para o saque. Para além deste recomeçar absurdo do zero várias vezes ao longo de uma vida, o cúmulo do absurdo da guerra é apresentado no momento da guerra civil em que os soldados que vêm saquear perguntam aos aldeões de que lado eles estão: do lado “deles” ou dos “outros”? Mas ninguém consegue responder: as fardas eram “todas parecidas com as do inimigo”.
3. O ideal de uma guerra civilizada e limpa é muitas vezes acenada pelos espíritos ocidentais como possível. E em nome da supremacia moral do Ocidente atrai-nos esta ideia: a morte pode ser minimizada, a destruição evitada, as vítimas limitadas à tropa, os inimigos sacrificados apontados como moralmente execráveis. Sabemos bem que isso não é possível, que estamos a pensar de um dos lados da barricada. E que a imposição da força (e de uma ideia cultural) traz atrás de si, na maior parte dos casos em que há resistência, crueldades que se escondem debaixo do tapete.
E isto encaminha-nos para a ideia (realista) de que só o caminho da paz, o mais difícil e mais longo, é verdadeiramente civilizado. Num século que coloca no centro a comunicação, a paz e os acordos de paz são na verdade uma conquista inestimável da modernidade.
(A obra “A Minha Guerra” inclui dezenas de depoimentos de ex-soldados, entre os quais o do guardense José Guedes Ribeiro, figura conhecida ligada à Tipografia Beira Serra, da Guarda)
Por: Joaquim Igreja