Nas ruelas de San Andrés Itzapa passeia-se o presente da Guatemala, despudorado e cruel como a canina luta de vida e morte da praça do mercado; passada a porta da escola Pájaro de Fuego, é impossível não dar conta que é o futuro que está em causa e se insinua na sombra de cada criança, no piso de terra batida. Com todas as suas carências, a Pájaro de Fuego é uma escola especial porque projecta longe a sombra de um futuro diferente para a comunidade indígena e alimenta a esperança de que é a educação que torna esse futuro possível. Não há outra que permita quebrar o ciclo de pobreza e exclusão. A pouco idade e a despreocupação instintiva das crianças afasta-as de tais cogitações, mas cada uma expressa essa insondável esperança à sua maneira, de forma física e intuitiva, com um gesto, um olhar, um sorriso aberto, uma confissão, um movimento decidido. Ou então uma hesitação, a entrega relutante, um frenesim disfarçado de traquinice. O cortejo que antecede a entrada na escola é o cortejo dessa esperança muda e profunda que arranja formas alternativas de se expressar. Algumas crianças lançam-se numa correria desenfreada para ir receber os voluntários ao fundo da rua e depois voltar a subi-la às cavalitas ou de mãos dadas até à porta da escola. Outras esperam sentadas nos passeios e muros vizinhos, e a espera é feita ao ritmo do bater displicente de pernas no vazio ou das pequenas partidas e jogos aleatórios dos mais impacientes. À porta da escola Pájaro de Fuego, a espera diária confunde-se com a esperança e ambas dão realidade ao afecto autêntico de crianças para quem a escola é mais que uma escola; é lugar de afectos num quotidiano de violência doméstica, é lugar de alimento num quotidiano de carência, é lugar de regras, respeito e responsabilidade num quotidiano marcado pela anarquia organizada dos bandos armados que recrutam os rapazes. Antes de entrar, ainda há tempo para ir cumprimentar a dona Elena, a responsável pela escola e dirigente natural da comunidade, para saber das novidades e organizar alguns pormenores do dia.
Aquilo a que aqui chamo escola é um espaço aberto, de terra batida, delimitado por muros de diferente consistência. Num dos lados é um alto e robusto muro de blocos de cimento que a separa de outra propriedade; noutros, não passa de um frágil muro de adobe. As salas são espaços organizados de mesas e cadeiras que se distribuem à volta de um pátio central e estão delimitados por alpendres construídos, há pouco tempo, para sustentar os provisórios telhados de zinco. As crianças encontram-se divididas em diferentes níveis de aprendizagem mas a disparidade de idades dentro de cada um desses níveis é normalmente bastante grande. Isto deve-se ao facto de as crianças entrarem no sistema de ensino com idades variáveis e, no caso concreto da Pájaro de Fuego, poderem passar de classe, durante o ano, de acordo com os progressos que vão demonstrando. A escola é gerida pela organização não-governamental Global Vision International e funciona graças ao seu programa de voluntariado que todos os anos leva dezenas de pessoas de todas as idades a San Andrés Itzapa. A Pájaro de Fuego não substitui portanto a escola oficial, mas para as famílas mais pobres é a única forma de aceder à escolariadade básica, visto que o rendimento disponível – em muitos casos apenas um euro por dia – e o elevado número de filhos – 7, 8, 9 – não permitiriam pagar a ‘inscrição’ na escola e as ‘contribuições’ que a toda a hora são pedidas às famílias para a manutenção e o seu regular funcionamento. Em teoria, o ensino básico é um direito na Guatemala; na prática, o estado pouco faz para que a gritante exclusão dos indígenas impeça usufruir esse direito. A Pájaro de Fuego não é só uma segunda escola que funciona também durante as férias da escola oficial; é um projecto que atribui às crianças mais pobres da comunidade bolsas de estudo anuais para frequentarem a escola oficial.
Há dois ritmos de vida diferentes que se passeiam pelas ruelas de San Andrés Itzapa. Um pachorrento, o das mulheres que arrastam a sua prole por toda a aldeia ou o dos trabalhadores do campo, catana à cintura, à frente dos animais de carga. Outro frenético, o dos tuc-tuc, as motorizadas-taxi que atravessam a aldeia de lá para cá e de cá para lá, rompendo a pacatez que por vezes deixar ouvir o milho crescer nas milpas. Na Pájaro de Fuego terminou mais um dia de escola e as crianças fazem fila para receber a sua peça de fruta diária. Vão saindo aos poucos, depois de arrumarem mesas e cadeiras e empilharem as bolsas do material, repetindo as pequenas partidas e jogos aleatórias da espera. A Amália e as irmãs ficam para trás, resistem ao fim de mais um dia de escola. Sabem que sobraram barritas de pão e que os voluntários não lhas vão conseguir negar.
Por: Marcos Farias Ferreira