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Grandes esperanças

Destemido como Tintim e bem intencionado como Spirou, desloquei-me a Valhelhas, a convite insensato deste jornal, para assistir aos concertos incluídos no programa do Festival Serra da Estrela. A promessa, duas mãos cheias de bandas e dois olhos cheios de bundas. A conta, uma descrição pormenorizada para os leitores de O Interior que, de forma adulta e responsável, ficaram em casa a jogar na consola de vídeo ou a ver o filme Rabanadas Caseiras no leito conjugal.

À chegada ao festival, colocam-me uma pulseira azul no braço direito com o aviso “Não pode tirar nem rebentar esta pulseira. Sem ela não pode voltar a entrar”. As minhas esperanças de actividade sexual para o fim-de-semana acabaram na recepção.

A música e a comida eram agora as minhas únicas esperanças. Aspiração rapidamente esvanecida, as sandes de frango mal acondicionadas e não inspeccionadas pela ASAE eram bem melhores que os dois grupos que se digladiaram com os instrumentos na primeira hora e meia de palco. Restava-me, desta forma, a alimentação como suporte à observação cuidada dos espécimes e da sua ornamentação colorida.

As rastas estão para os festivais de música como as farturas para as feiras populares. Além de cada uma delas encontrar nos respectivos ambientes o seu habitat natural, rastas e farturas são, na sua devida contextualização sociocultural, feitas de uma pasta entrelaçada devidamente envolvida em óleo e polvilhada com várias substâncias em pó. Devo reconhecer que o meu estômago sensível sofre de indigestão quer com umas quer com outras. Também da mesma forma que uma roulotte onde se prepara a massa frita percorre o país todo atrás das comemorações de qualquer Nossa Senhora ou santo padroeiro, os malabaristas e demais simpatizantes do Chapitô vagueiam durante o Verão de festa em festa e de palco em palco, sem parar nem lavar o cabelo.

Imbuído de espírito missionário, visito a zona onde os adolescentes se aglomeram para assistir ao concerto – curiosamente, mesmo em frente ao palco. Ao meu lado alguém fuma substâncias proibidas, mas quase não se nota, devido ao cheiro intenso do haxixe. No palco, um tipo segura no microfone como eu agarraria a Rachel Weisz, fosse-me dada a oportunidade. Não compreendo uma palavra do que o tipo está a cantar, mas de igual forma nada se entenderia estivesse eu com a boca próxima dos lábios da britânica.

Junto à vedação exterior corre o rio Zêzere. Considero a hipótese de afogamento e o rebentamento dos tímpanos contra a curtição sonora em curso no momento em que a actuação termina. Peço mais uma sandes de frango. Hordas de adolescentes – de braços e ombros destapados numa noite gélida – percorrem o recinto em busca de mais uma cerveja e um local para a despejar. As actividades radicais estão representadas por um balão que sobe uns quatro metros e volta a descer. A ganza já dá vertigens suficientes.

No palco actuam agora dois brancos de Leça da Palmeira que se julgam dois pretos da liça das palmeiras. A rapaziada dá mostras de tolerância racial e nem dá pela diferença. Talvez um ou outro protesto inicial que os bonés na cabeça e os constantes apelos “Yo, tá-se bem” fizeram rapidamente desaparecer. Nessa noite, como há muitos anos Martin Luther King, também eu tive um sonho.

Embora a estadia no parque de campismo estivesse incluída no bilhete, decido não pernoitar naquele centro populacional. Está composto por centenas de pequenas habitações semelhantes às moradias dos povos nómadas da África Oriental, dispostas num traçado tipicamente medieval e europeu e construídas em fibra e alumínio. A casa de banho única no recinto acrescenta ao conjunto o ingrediente final capaz de levar à demência qualquer ser civilizado. Os adolescentes que ali permanecem aparentam, por conseguinte, uma alegria tremenda. Afinal de contas, estão por sua conta durante quatro dias. A organização, a bem da Nação, organiza actividades durante o dia para manter as criaturas ocupadas.

Segunda noite. (Na verdade, a terceira do festival, mas o director de O Interior pediu-me um texto, não um martírio.) As rastas chegam enfim ao palco depois da actuação de um grupo inspirado em música celta. É o dia do discurso político – pelo menos na minha cabeça, que tinha passado uma parte da tarde (seis minutos) a ler o Expresso. A assistência revela-se novamente tolerante e ecléctica. Ouve com a mesma satisfação os sons dos escravos do Império e dos bárbaros da Antiguidade Clássica. Um rapaz traja uma camisola onde se lê a inscrição “Não à guerra”, enquanto abana freneticamente o corpo ao ritmo de uma melodia de inspiração celta – um povo com uma organização social quase exclusivamente bélica. Da contradição nasce a força. Siga. Para o reggae esquizofrénico. Com rastas nas teclas e charros nos batuques. O vocalista, um queque portuense. No entanto, esforçado. Embora se lhe adivinhe o perfeito sotaque de Oxfordshire por baixo da camisa impecável, tenta sempre imitar o acento caribenho para dar autenticidade à actuação. Os jovens que fazem girar vários quilos de erva enrolada em pequenos pedaços de papel não perdoariam um refrão de Bob Marley com pronúncia de Jeremy Irons.

A noite continua com ritmos de globalização alternativa e – explica a vocalista – uma dança “que os africanos dançam quando estão na miséria”. Dos campos de refugiados do Darfur às fazendas do Zimbabwe, nunca se vê na televisão a dança com que somos longamente presenteados. Aparentemente, os media não querem que se veja o quanto se sofre no continente africano. Substituo as sandes de frango do dia anterior por sandes de leitão. Por enquanto, dou graças à minha sorte e não preciso de dançar.

A noite termina com uns rapazes portugueses que se fartaram disto e foram viver para Nova Iorque. O facto desperta-me a crença na inteligência da espécie. Mas à saída olho em redor e dou-me conta que aquela turba de rapazes e raparigas vão por ali ficar mais um dia ou dois. Entro no carro e regresso a casa. Leio um capítulo de A Origem das Espécies e adormeço.

Nuno Amaral Jerónimo, em Valhelhas

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