No genérico ainda se diz que é «a Spike Lee joint», mas a realidade é um pouco diferente: “Infiltrado” é um filme de estúdio, com um orçamento de quase 50 milhões de dólares, um típico objecto codificado (assalto a um banco com reféns e negociações em curso, um golpe de mestre, um polícia manhoso, um malandro à altura), coalhado de grandes vedetas (Denzel Washington, Jodie Foster, Clive Owen, Christopher Plummer, Willem Dafoe), nada que se pareça com os usos e costumes de Lee, habitualmente dedicado a projectos de carácter mais pessoal. E, todavia, se nos lembrarmos dos parâmetros que definiram a «política dos autores» (que, apesar de ter já um vetusto meio século de idade, convém não perder de vista), tudo isso importa menos que os sinais que um realizador consegue imprimir nos filmes que assina, apesar das contingências em que cada um deles foi feito.
E “Infiltrado” tem a marca de Spike Lee por todo o lado, nem sequer precisando, para o atestar, do carimbo «40 Acres & A Mule Filmworks», que, todavia, mesmo lá no termo do genérico final, se imprime. Onde estão essas marcas? Antes de tudo, o tom «nonchalant», a leveza, a ironia com que cada um dos personagens (e o próprio golpe) é desenhado, não porque não haja coisas sérias na vida – e neste filme há e não são poucas -, mas porque há uma forma esforçada e uma forma ladina de levar a água ao moinho e Spike Lee sempre preferiu a segunda. Depois, o olhar sobre Nova Iorque, o perfil de uma cidade multicultural condensado em meia dúzia de metros quadrados e numa acção que já vimos mil vezes encenada (espantosa a forma como o polícia resolve o problema de encontrar um tradutor de albanês), as tensões raciais sempre a emergir, as memórias traumáticas da História a circular por toda a parte. E ainda – e sobretudo – a eficácia da realização, a capacidade de ir induzindo os acontecimentos através dos recursos específicos do cinema, a imagem e a montagem, explicando muito menos do que seria de esperar num filme de estúdio, antes fazendo fé na capacidade de relacionamento e na perspicácia do espectador, que, no fundo, torce tanto pelo polícia como pelos assaltantes e não vê como é que o desfecho da história pode conciliar esses dois desejos. O prazer do cinema é também esse: jogarmos, nós espectadores, com as nossas expectativas e sentirmos que o filme sabe isso.
É claro que “Infiltrado” tem um problema: o «macguffin» de toda a trama não é lá muito credível, o segredo guardado num dos cofres do banco não faz sentido que tenha sido preservado pelo seu detentor, o que, para os fanáticos da verosimilhança, há-de sempre constituir pedra no sapato. Mas convém olhá-lo não pelo seu valor facial (aquilo que faz mover a acção) mas como «macguffin», pretexto irrisório para um nó a desatar, onde o essencial é o nó e não a razão por que foi atado. Pelos vistos, é o que o público está a fazer: nos EUA, “Infiltrado” é já (e ainda só estreou há três semanas) o maior sucesso de sempre de Spike Lee. E ele bem que necessitava deste mergulho no “mainstream”, de onde vinha andando arredado.
Por: Jorge Leitão Ramos