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Germinal

1. Criou-se a ideia de que, nos encontros literários, os escritores se aproximam do público, o público se aproxima da literatura e os livros se transformam num prato de amendoins no meio da cavaqueira. Por sua vez, cre-se que os escritores supostamente despem a sua áurea de inacessibilidade – “até falam de futebol”, disse-me uma prima que esteve num encontro desses, há uns anos -, fazem esquecer epopeias misantrópicas e trocam acaloradamente os respectivos cheiros a sovaco. Alguns não se importam mesmo em subir a saia e deixar escapar algumas inconfidências acerca da sua próxima obra. Outros, são já profissionais da “coisa”. Misturam-se no milieu como agentes infecciosos oportunistas. Nunca escreveram nada que se aproveitasse, mas o seu esforço penetro-insinuante acaba por dar frutos sumarentos. Estão lá quase sempre. São vistos. E se são vistos, algum editor acaba por convidá-los para. Neste caso, a chamada endurance do croquete, com final feliz. Já agora, por falar em croquete, vou dizer o que, para mim, representa a maioria dos encontros literários: sessões de masturbação colectiva. Nem mais. Isto porque os verdadeiros encontros literários passam-se, digamos, noutra frequência hertziana, noutro filme: é o escritor, quando se encontra a si próprio, ou seja, o seu terreno. Alguns exemplos: Malcolm Lowry e o México, Duras e a Indochina, Rilke e os anjos, Kafka e as sombras, Yourcenar e as ilhas gregas, Camus e o sol do Mediterrâneo, Nabokov e o exílio, Borges e os labirintos, Faulkner e Yoknapatawpha.

2. Carlos Queiróz, o ex-futuro campeão de alguma coisa, comentou os assobios e os “olés” ouvidos recentemente no estádio Municipal de Coimbra, durante o jogo amigável com a China: “não caíram bem na generalidade dos portugueses” (sic)! Pudera! É que o “treinador das palestras”, como é conhecido, esqueceu que o futebol é, sobretudo, um espectáculo. E, como tal, o público pode e deve apreciar a qualidade do desempenho dos executantes. Que não podem excluir-se dessa sujeição ao escrutínio. Um país apoia a sua selecção se sentir que ela representa o melhor futebol que aí se produz e não os interesses de uma tribo nebulosa. Um seleccionador deve ser alguém impermeável a pressões. Alguém que sabe o que quer e para onde vai, por muito que isso doa às redes de influência. Infelizmente, Carlos Queiróz é hoje pouco mais do que um moço de recados do FCP. E a selecção uma simples montra para jogadores daquele clube e uma agência de naturalização para emigrantes brasileiros. A qualidade do seu jogo deixa antever que não passará da fase de grupos em África do Sul. Com algumas humilhações pelo meio. Assim sendo, aqui fica a minha posição oficial na fase final do campeonato do mundo: apoiar a Argentina. Ou seja, a selecção onde jogarão Di Maria, Saviola e Aimar. O resto já sabem…

3. Eis uma oferta de emprego, que descobri no meu spam: “Nível de Aptidões Técnicas: 1. Fortes capacidades conceptuais; 2. Excelente capacidade na resolução de problemas. Nível de Capacidades Profissionais: 1. Excelente capacidade de comunicação escrita e oral; 2. Excelente capacidade de Organização; 3. Capaz de trabalhar eficientemente cruzando diferentes ambientes funcionais; 4. Atitude positiva e um excelente senso de Humor; 5. Capaz de trabalhar sob stress, em tempos de execução de tarefas muito curtos e de forma autónoma; 6. Excelente capacidade de Análise; 7. Capacidade de trabalho excepcional. Atributos: 1. Paixão; 2. Accountability; 3. Orientação a resultados; 4. Capacidade de adaptação; 5. Atenção ao detalhe; 6. Bom trabalhador em equipa; 7. Excelente capacidade a resolver problemas”.

Como porventura se deram conta, trata-se de um emprego para um autêntico Übermensch nietzscheano caricatural. Ou seja, para um verdadeiro apaixonado por accountability (que, em bom português, significa, “pôr-se a jeito”), um cruzador de diferentes ambientes funcionais, acima de qualquer suspeita, capaz de trabalhar sob stress olhando para o relógio, sem sequer praguejar onde um estóico já o teria feito, possuidor de um conceptualismo à prova de detalhe, não vá o diabo tecê-las, bom em equipa e em “autonomia”, adaptável a tudo, calcinhas sempre em baixo, agradecer sempre, e ainda capaz, ainda pronto para tudo resolver, tudo prever, tudo organizar, tudo remendar, o funcionário modelo que preenche os sonhos mais lúbricos do capital, o que cumpre a hagiografia do produtor inefável, do executor multiusos, de um émulo de Deus sem Deus, de um semideus sem arte, gravitando em torno da perfeição de um autómato, destilando energia positiva, sempre energia positiva, e humor, muito humor, enquanto o látego sobe e desce, enquanto os dias se estendem como tições em brasa, enquanto a mentira vai sobrando como a única verdade, enquanto lhe é negado o último reduto da sua dignidade, enquanto o sorriso regulamentar vai enganando a submissão.

Por: António Godinho Gil

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