1. No mesmo país, Portugal, há dois países que coexistem. Funcionam em ritmos e com constrangimentos diferentes. Parecem justapostos e empáticos, mas na realidade resultam de escolhas políticas antagónicas. Um deles vive na economia real. O outro é alimentado pelo assistencialismo e boa vontade do Estado. Para quem vive na economia real, cada dia é um desafio. Produzir bens e serviços é encarado com desconfiança, pela burocracia e pelo paternalismo estatal. O país da economia real é a vaca que alimenta o outro, o país da irracionalidade económica e do desprezo por quem cria riqueza. Porque o Estado nunca esteve, nem parece vir a estar, ao serviço das necessidades reais, mas de uma ficção voraz e eleitoralista.
2. Será que os critérios usados na arrumação política comum a tornam minimamente aceitável? Na verdade, o que muitas vezes pesa é a tradição, a necessidade, o ar do tempo. Ou fazer parte de um movimento, uma acção colectiva. O equivalente a uma prova de vida. Noutros casos, misturam-se convicções com ressentimentos e a fantasia com a realidade. Em muitas ocasiões, agitar cachecóis de um clube de futebol, ou bandeiras de um partido político, vale exactamente o mesmo. Com vantagem para o futebol, pois aí não tem que haver justificações para a paixão clubística. Para alguns, nos quais me incluo, a questão é semelhante à da construção de uma casa. Começa-se com pilares acima de qualquer suspeita. Depois as paredes sólidas. O aproveitamento máximo do espaço. Boa exposição solar. Finalmente, um telhado robusto q.b. A decoração e o aproveitamento dos espaços é uma questão onde predomina o efémero e o útil. Para mim, as convicções políticas reduziram-se a um núcleo essencial de princípios éticos. Tudo o mais, é adesão mais ou menos profunda ou circunstancial a uma área onde esses princípios melhor se acomodam. Alguns exemplos: embora preze o comunismo como utopia, sei bem onde a sua materialização pode levar: uma distopia monstruosa. O socialismo é uma boa ideia, mas não deixa de ser contra-natura. No entanto, é um desejo simpático que nos lembra o nosso lugar. O liberalismo é útil para agitar umas bandeiras ao domingo. Mas não serei eu quem dele tira partido. O conservadorismo é um ambiente conceptual, que uso para burilar o cepticismo e a agilidade. Por último, o anarquismo é o eterno e adiado modelo de existência social. Um sonho secreto.
3. Poe foi um modelo do ‘poète maudit’, ou seja, aquele em que o objectivo da poesia é da mesma natureza do seu princípio. Baudelaire e Valéry acolheram com entusiasmo as teorias literárias do genial bostoniano, vertidas em ‘The Philosophy of Composition’. E não tardou a aparecer na Europa filo gaulesa a ‘poesia pura’. Ou seja, uma fase da composição poética onde o assunto e o estilo deram lugar à autoconsciência da linguagem. Ou seja, o assunto passa a ser um meio para a realização do poema. E o estilo uma’ impureza’ que anuncia o único fim: o poema.
4. Costumo ouvir o comentário político de Marques Mendes. Às vezes acerta no alvo, é light q.b. e os temas estão em sintonia com o alinhamento dos telejornais. Não tem a profundidade ou a acutilância de Pacheco Pereira. Nem o cinismo e o desplante de Júdice. MM é bem a imagem do (ex) político mediano, mas sagaz, que consegue bons planos panorâmicos. Porém, deficitário no detalhe, na História, na malha crítica. Se fosse poeta, não passaria do epigrama. E o país que apresenta é um país circunscrito à estratégia dos directórios partidários, ao desempenho dos actores principais, à dança das cadeiras. O que conta é, afinal, o microcosmo virtual onde a classe política se movimenta e vai sobrevivendo. O chamado país real, os grandes movimentos de fundo, a heroicidade do cidadão anónimo, nada disso lhe interessa. E por que haveria de interessar? Ou não será Marques Mendes um cronista maior de uma realidade pequenina?
5. Há-de haver um dia em que as pernas vacilam. E as mães já não acenam à janela. E os barcos já não sobem o rio. E a fuligem invade as casas. Haverá um dia, um dia certo, em que os meus passos já não despertarão os pássaros. Um dia em que as palavras já só poderão ser trocadas por outras palavras.
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia