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Germinal

1. Na Guarda, vive-se um momento político singular. De um lado, um PSD fazendo de conta que cerra fileiras para que Amaro seja reeleito em modo “passeio triunfal”. E, uma vez que Coimbra tem mais encanto na hora da despedida, o actual presidente da edilidade prepara-se para mais uma comissão de serviço na beira serra. Mas que pode bem ser minoritária. Do outro lado, o PS vegeta numa penosa agonia. Iniciada com o recente jejum de poder. Percebendo-se quem (ainda) lá manda realmente – caciques de terceira linha – e como não se conhece a existência de testamento vital, é de prever eminente eutanásia. O CDS dissolveu o matrimónio. Está assim aberto espaço para candidaturas de cariz independente. Que reúnam cidadãos que se preocupam com a polis, em vez de lugares e mordomias. Que apresentem um programa com duas ou três ideias chave para o futuro. Sem deixar de ouvir as pessoas e de olhar para os números que reflectem a realidade económica, social, cultural e demográfica do concelho.

2.Graças às suas bombásticas declarações, o Sr. Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo, conseguiu um feito inigualável: uniu os portugueses no repúdio à torpe alusão de que gastam as esmolas em álcool e mulheres; distraiu o dr. Costa da contemplação do site da felicidade, para subir ao palanque, de peito feito, e assim salvar a honra da Pátria, num registo de incomparável provincianismo; and last, but not least, conseguiu que, durante uma semana, não se falasse do senhor Trump. Curiosamente, foi mais ou menos isto que levou Lutero a afixar o papelinho com as 95 teses na catedral de Wittenberg. Substitua-se «gastar o meu dinheiro com os vossos copos e mulheres» por «gastar o meu dinheiro com as vossas indulgências» e a coisa anda ela por ela. Quinhentos anos depois, a linha que hoje divide a Europa não é religiosa, mas sobretudo cultural e anímica. Corresponde, mais ou menos, à linha que separa a Europa do tomate e do vinho, da Europa da batata e da cerveja ou da vodka. A Europa sexualmente reprimida (a sul), da Europa emocionalmente reprimida (a norte). A Europa onde dívida e culpa têm a mesma natureza, da Europa onde o perdão regenera e a culpa morre solteira.

3. Na convivência corrente, os tempos da comunicação são os das séries televisivas. A economia narrativa faz lembrar o sexo tântrico: retarda-se o clímax até ao limite. Porém, ainda que o enredo se suspenda, a narrativa é ininterrupta e não há espaços em branco. Mas quando se trata da comunicação entre amigos, a história é outra. O que conta é a intensidade e as circunvalações do silêncio. Não há continuidade, mas avanços e recuos. São os tempos do cinema.

4. Na egitana cidade onde vivo, ao falar com os mais antigos, é frequente ouvir rasgados elogios ao meu avô, Joaquim Gil Martinho. «Um grande democrata!», dizem. «Elementar justiça, quando a memória é tudo», penso, com orgulho. Mas vou mais além. Suspeito que o labor político (usando um termo feliz de Hanna Arendt) meu e dele é comum. Tem a mesma marca. A mesma génese. A mesma generosidade. A mesma inquietação. O mesmo compasso. A mesma humildade de quem quer medir o tamanho do mundo. Só mudam os cenários, por imposição do tempo. Ele lutava contra a resignação, contra os demónios de um regime ditatorial. Eu tento lutar contra os donos da virtude, os polícias da correcção política e o nepotismo.

5. O pobre conta os tostões. A criança conta as ovelhas antes de dormir. O onzeneiro conta as moedas. O devoto conta as avés marias. O vaidoso conta os elogios. O pusilânime conta as hesitações. O herói conta as medalhas. O adulador conta as vértebras que lhe restam. O pescador conta as ondas antes de se fazer ao mar. O político conta os votos. O pastor conta as rezes. O mau poeta conta as palavras. O poeta verdadeiro foge delas. Mas sabe chamar a si as que precisa para nutrir a tocha que há-de iluminar-nos os passos na longa noite.

6. É interessante ver a devoção do idealismo voluntarioso pela ambição alucinada. É a atracção fatal da vítima pelo sequestrador, ou da desordem pela eficácia. O Directório precipitou o proconsulado de Napoleão. O último triunvirato da República preparou César. A licenciosidade desenfreada dos Stuart convidou Cromwell. A alienação consumista da III República portuguesa consentiu Sócrates. E por aí adiante.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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