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Germinal

1. A matriz primordial da poesia é a epopeia (o épos helénico). Tenha ela propósitos religiosos, bélicos, ou identitários. Uma realidade comungada por diferentes civilizações ao longo da História. Só o lirismo da poesia trovadoresca medieval veio pôr definitivamente em causa aquela génese, abrindo caminho ao subjectivismo. No recém-celebrado Dia Mundial da Poesia, algumas interrogações se me colocaram acerca desta vocação “fundadora” da linguagem poética, do seu irresistível valor simbólico. E, sobretudo, poderem ser essas as razões porque se torna inevitável o seu aproveitamento pelas instâncias políticas. A sua captura pelas representações ideológicas dominantes ou minoritárias. Coexistindo ou não com as várias gradações da censura (do corte puro e duro ao macartismo, da eliminação física dos regimes totalitários à “auto-regulação” praticada por certas vanguardas e movimentos artísticos). Efectivamente, esse poder de atracção explica muita coisa, mas não explica tudo. A instrumentalização da poesia, consciente ou não, ainda que contenha traços comuns em todas as modalidades, é no último caso referido que adquire especial significado. Ou seja, como suporte da hagiografia da “resistência”, do “contra-poder”, da luta de sublevação ou entre facções. Ou, o que é mais comum, quando é usada como “causa”, fracturante ou não, como veículo de legitimação, como arma de arremesso, brandida na luta política de acordo com determinadas agendas pessoais / partidárias. Quem o faz, normalmente movido pela inquietação burocrática, confunde a poesia com uma litania grandiloquente, uma jeremíada mobilizadora… É o regresso da velha tese de que, grosso modo, a arte deverá estar ao serviço de um programa político, cingir-se a um estatuto decorativo. Que tanto pode glorificar o poder como industriar os seus oponentes circunstanciais. Esta tentação teve as consequências devastadoras que se conhecem ao longo da História… Por outro lado, a justificação dada pelos defensores da poesia (e da cultura em geral) como veículo de contra-poder é a de que uma suposta neutralidade beneficia o(s) poder/es instalado/s. Partindo de uma presunção: quem cala consente. Ou seja, se determinada criação artística não critica, não questiona, não ridiculariza, quer isso dizer que, por exclusão de partes, sendo inócua, serve o outro lado da barricada. Trata-se de uma visão redutora e enganadora. Que, na prática, apresenta dois óbices: a) Em primeiro lugar, não resolve uma questão: em rigor, essa neutralidade, ainda que presumida, nunca existiu. Mesmo as realizações da cultura domesticada contêm carga ideológica, precisamente pelo que lá não está. No seu último documentário, Zizek demonstrou que a ideologia se esconde precisamente atrás da banalidade e das assombrações particulares. Que convive tão bem com as mitologias “autorizadas” como com as refractárias. Que serve o pensamento hegemónico ou a “contracultura” sem praticamente nunca precisar de um slogan. b) Em segundo lugar, a tese referida cria um problema. Ou seja, essa “neutralidade” apolítica, essa música de fundo dos poderes instalados deveria ser então uma categoria universal. Que serviria para qualquer poder e qualquer regime. Mas tudo me leva a acreditar que, para os defensores desta posição, o merecimento de um poema, de uma sinfonia, ou de uma peça de teatro que põe em causa determinado regime político, é avaliado de acordo com a proximidade relativa com esse regime. Da mesma forma que os critérios para determinar a neutralidade são mais ou menos exigentes consoante o grau de empatia ideológica. Pela minha parte, é bom esclarecer que a poesia é, por natureza, avessa a filiações ideológicas, obediência a agendas políticas, redução a ornamento de lapelas sinistras. As únicas leis que movem a poesia são a necessidade, a vertigem e a consciência da irredutível liberdade. É o fruto singular de um “retiro pelo risco”, título colocado por Henri Michaux a uma das suas obras. Só assim a poesia evitará ser um bidé lírico, ou ideológico. Ou, pior ainda, uma piedosa mistura dos dois…

2. As imagens do ministro Varoufakis no seu idílio privado correram mundo. Pouco depois, pediu desculpa aos gregos. O episódio faz parte de uma estratégia de marketing planeada ao detalhe. Que começou pela ostentação de um casual wear nos rounds negociais. E que passou pela exibição de uma “dolce vita” mediterrânica para chocar a Europa. O terceiro acto da comédia grega foi o reconhecimento do congelamento das promessas eleitorais. O epílogo, como não podia deixar de ser, foi um mea culpa nada consentâneo com a valentia helénica. Creio que Varoufakis sabe muito bem o que quis mostrar. Sendo ambicioso, foi o primeiro a pensar no futuro, num cenário mais que provável do pós-Syriza. Ainda para mais com Putin, o seu principal financiador, convalescente.

3. Dou conta da roda de comentadores desfilando na TV. A maioria descreve o país usando cenários aterradores, previsões apocalípticas, anúncios gélidos. Um ET que levasse esta mistificação a sério tomaria Portugal como um país de zombies, caminhando ao toque do látego, sem esperança, sem vontade, sem fulgor… Mas quando olho melhor para esses profetas da desgraça, concluo que estão simplesmente zangados com a vida. Ou que têm problemas de digestão, como diria Nietzsche…

Por: António Godinho Gil

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