Arquivo

Germinal

1. Caros(as) amigos(as), a vida é cheia de surpresas. Esqueçam o “querido, mudei a casa!” O modelo está esgotado… Até mesmo se a frase for levada à letra. O que, conforme demonstram alguns programas do “Discovery Channel”, nem é difícil, desde que apareçam as roldanas e os dispositivos rolantes apropriados. Segredos bem conhecidos dos antigos egípcios, é sabido. Sobretudo quando deslocavam blocos de pedra maciços, com várias toneladas, dos barcos para os locais de construção, a vários quilómetros de distância. E não consta que os faraós fossem grandes apreciadores de decoração instantânea. Por outro lado, o mito urbano do canalizador polaco já teve melhores dias. Argumentos non sequitur, já vos oiço dizer. Peço-vos um pouco de paciência, caros(as) leitores(as). O episódio que vos quero relatar é de tal forma absurdo que nem o Mc Gyver algum dia sonhou deparar-se com ele. E muito menos resolve-lo. O caso é que, anteontem, ao dar conta do estado de funcionamento de um apartamento para arrendar, verifiquei que o reservatório do autoclismo não vedava. Pelo que a água não parava de escorrer. De imediato, desmontei a tampa do depósito, do género incrustado na parede. Não demorei a perceber que a borracha, no fundo, embatia num objecto metálico, impedindo assim que estancasse a água. Fechei a torneira geral e voltei pouco depois, munido de uma generosa caixa de ferramenta, um pequeno espelho e uma pilha. Comecei por desmontar o mecanismo fixo, que acciona o tubo de plástico com a borracha ao fundo. E cujo movimento de vai vem, como um êmbolo, abre a fecha o fluxo de água descendente. Sem obstáculos, introduzi a pilha na concavidade da parede, com o espelho por cima, a fazer de periscópio. Qual não é o meu espanto quando vislumbrei o que estava no fundo: duas facas! Exactamente, leram bem. Recomposto da surpresa, imaginei logo um plano B. Saí novamente, para ir ao carro buscar uma coluna de som avariada, que tinha substituído no dia anterior. Em seguida, desmantelei-a, afim de extrair o precioso íman. Retirei também um resto de fio eléctrico que ficara ligado à ex-coluna. Com um alicate de corte, perfurei o invólucro de latão que rodeava o íman e nele atei uma ponta do fio. No final, introduzi o íman no reservatório e manobrei o fio que o prendia, por diversas vezes, até sentir cada uma das facas “colada” ao íman. Puxando-a depois cuidadosamente até à abertura. E foi assim que resgatei os dois objectos metálicos. Após o que montei novamente o mecanismo. Tendo verificado, então, que o dispositivo, desta forma expurgado dos “intrusos”, funcionava razoavelmente. Conclusão: as coisas valem o que valem, é tudo uma questão de ferramenta.

2. Em conversa, alguém me questionava acerca da minha profissão de fé de ter sempre um plano B para tudo. Como se tal facto tivesse atrás de si uma suspeição permanente lançada aos outros. Nada disso! Pela parte que me toca, logo à partida existem duas vantagens em jogar dessa maneira. A primeira é de ordem essencialmente prática. Procede daquela ideia tributária do cinismo, que consiste em “esperar o melhor, mas contar com o pior”. E não há aqui qualquer juízo de valor. Perante a evidência, nada melhor do que estar preparado para ela. Ora, se a realidade não é confiável, se os outros nos poderão surpreender a qualquer momento, a única forma de encarar o facto com naturalidade é precisamente confiar nessa tendência. Com agilidade. Sem dramas. A outra razão é de ordem filosófica e, aparentemente, mais obscura. Tem a ver com a necessidade permanente da desidentificação. Ou seja, com a capacidade de não fazer depender a nossa realidade das nossas circunstâncias. De saber despojar-nos delas. De não fazer depender uma certa plenitude dos objectos familiares que, supostamente, a confirmam. Tudo está e depois deixa de estar. Ou vice-versa. E onde entra o plano B? É simples: actuar permanentemente como visitas ou visitados. Saber ficar aceitando o que é, estando ou não.

3. Há cerca de um mês, acedendo a um convite no Facebook, partilhei a minha lista de livros “Top 10”. Uma argola a mais de uma longa cadeia de desafios do género que pontuam nas redes sociais. Na altura, após ter reflectido melhor, talvez evocando Borges, decidi compor uma outra lista, que preenchesse alguns requisitos ignorados na 1ª. A saber: a) levar em conta a importância real de cada livro, não a desejada; b) optar por obras completas de um autor, mas que, afinal, são um único livro; c) nunca perder de vista a obra que, por mais que releia, volto sempre ao início; d) escolher um livro que sonhei sempre ter lido, mas que, afinal, não estou certo de ter lido; e) incluir sempre os livros de leitura da 1ª à 4ª classe… Seria então a lista provisória dos 10 livros das minhas vidas.

Por: António Godinho Gil

Sobre o autor

Leave a Reply