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Frimário

1. Agora que o efeito Trump já acalmou um pouco e os media “liberais” já o atacam não com desprezo, mas com rancor, apetece acrescentar algo mais. No passado dia 22, fez 53 anos que JFK foi assassinado. Até hoje, ainda nenhum presidente americano sequer rivalizou com as suas qualidades políticas e o seu glamour. Trump parece estar no fim da escala, nesta como noutras comparações. E parece um erro de casting. No entanto, embora seja tentador ir por aí, é preciso perceber uma coisa essencial: ele foi escolhido porque a hubris nacional e o imediato falou mais alto. E tudo o que fizer enquanto presidente só a eles será fiel. Por outro lado, o drama é que, por muito detestável que seja o universo politicamente correcto que o diabolizou, algumas vezes com razão, não é isso que, aos meus olhos, o torna melhor.

2. É insuportável ver campanhas de Natal e “animação” de rua, um mês e meio antes do dito cujo. Dá a ilusão de dinamismo, aconchego, responsabilidade social!… No limite, é o “amor radical”, como quer a líder do CDS, Porém, na humilíssima opinião do escriba, a coisa é mais “colinho de néon para gastardes o subesídio antes dos outros, cambada!”.

Pior do que isto, só mesmo os votos de Boas Festas e enormíssimas felicidades, em cima da hora. Dever cumprido. “Olha, o teu amigo J… anda deprimido / sozinho / sem rumo / à toa / sem dinheiro / com uma doença grave!”. E tu dizes: “Que aguente! No Natal mando-lhe o cartão e a garrafinha da praxe!”

3. Prefiro, de longe, os que mostram as suas convicções e os seus empenhamentos, em vez daqueles que os simulam, ou mascaram. Prefiro aqueles que optam por deixar para trás quem não os respeita, ou não os acode, ou não é capaz de os amar, em vez daqueles que, querendo agradar a todos, um dia ficam prisioneiros da sua hesitação. Prefiro aqueles que esgrimem as suas razões correndo, ou saltando, em vez daqueles que o fazem carregando pesos. Prefiro aqueles que confrontam à luz do dia, em vez dos outros que desprezam cordialmente, à noite. Prefiro a chama ao calor. A delicadeza à simpatia. O movimento à deslocação.

4. E que dizer daquelas almas que partilham fotos nas redes sociais, onde aparecem a discursar em tribunas, ou em sessões solenes? Os temas e as causas podem ser as mais nobres. Mas o que realmente interessa é o figurão, em pose majestática, debitando vacuidades sobre a questão. Demonstrando que está pronto para uma carreira política promissora. Noutros países, um provinciano tem que se colocar em bicos dos pés e fazer muito barulho para, ser notado. Por cá, basta colocar-se num púlpito, numa tribuna, num cadeirão. E cheio de si, tomar a palavra, ajeitar a gravata, compor uma sequência de lugares comuns e inanidades de circunstância. No final, é só postar no “Feicebuque” e pronto, já está! Estas sequências, se fossem só réplicas de sátiras queirosianos, far-me-iam tão só esboçar um sorriso de condescendência. Porém, abrem evocações preocupantes. Quem não pode deixar de trazer à memória o palanque onde Hitler discursava, nos anos vinte, numa cervejaria de Munique, atiçando as audiências? E não fará pleno sentido a associação, feita por Arno Gruen, entre o rebelde tomado por uma hubris cega e a pulsão totalitária?

5. Quando morre um tirano, tenha ele a cor que tiver, mais importante do que a elegia ou o festejo, é a recordação das suas vítimas. Todas. Ainda assim, no caso de Fidel, eis algumas das mais ilustres, exilados, presos, perseguidos, torturados ou assassinados: Cabrera Infante, Herbert Padilla, Reinaldo Arenas, Luis Lezama Lima, Virgilio Pinera, José Kozer, Yoani Sanchéz (jornalista e autora do blogue “Geração Y”, censurado pelo Governo, actualmente em prisão domiciliária), Rolando Reyes Rabanal, Mario Alberto Hernández Leiva, Miguel Ángel Tamayo Frías, Vladimir Ortiz Suárez, Marcelino Abreu Bonora, Ángel Moya, Antonio González Rodiles, Reinaldo Escobar, Díaz Silva, María Borrego Guzmán, Mejías Zulueta.

6. Num vídeo promocional do último salão erótico de Barcelona, uma actriz porno discorria sobre os males da Espanha contemporânea. Antes de mais, convém fazer um breve elogio da pornografia. Por muito que custe a alguns, a pornografia cumpre um serviço público. Estimula a imaginação. Faz por cumprir o célebre hino dos adeptos dos reds de Liverpool: “you’ll never walk alone”. Mas atenção, a pornografia é só uma aproximação à realidade. Despretensiosa e divertida. Mas a realidade não é assim. Pelo menos do lado das mulheres. O erotismo feminino leva muito a sério a permanência, o faseamento da aproximação e a sensibilidade táctil. Algo dificilmente detectável na economia narrativa da pornografia. Centrada numa genitalidade mecanizada, exibida até à exaustão. E numa disponibilidade total e, sobretudo, livre de “encargos” sentimentais, por parte das mulheres. Voltemos então ao que diz a senhora. Algumas coisas fazem sentido, sim senhor. Outras parecem decalcadas do catecismo totalitário do “Podemos”.

7. You know who I am, soprava o Leonardo Homem. Chazan sem Tora, guiando por entre os escolhos de Deus. Diante do tempo, há sempre novas forças, novos poderes, novas exaltações sombrias, que só algumas palavras cantadas e alguns acordes felizes poderão iluminar. E dançar para que o corpo não seja absorvido pelo enigma. Não é, Leonardo Homem? Não foi difícil para ti descobrir que é tudo mentira. E que só a alma suspensa do Chazan poderá conduzir-nos a uma existência informulada. E que só a invocação de uma ordem misteriosa e subtil poderá fazer de nós os mensageiros que tocam no gelo.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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