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Foi um dia memorável

Um dia assim, em 1977

Chovia pela manhã, mas o céu abriu e o sol irrompeu com intensidade. O meu pai agarrava-me pela mão, com força, enquanto caminhava, passada larga e rápida. Por vezes quase me arrastava por entre as pessoas. Eu tinha nove anos e nunca tinha visto tanta gente junta. Caminhávamos sem sabermos para onde, nem porquê, mas percebia que o momento era intenso e a ansiedade dominava a vontade de chegar depressa.

Só mais tarde compreendi.

Um helicóptero sobrevoava-nos e pousava mais à frente. Não vi, mas todos diziam que o General Ramalho Eanes tinha acabado de aterrar no estádio. E o povo estava na rua, extasiado, para o receber.

Mais tarde, frente ao Hotel, o meu pai pegava-me ao colo para conseguir ver alguma coisa. E vi então Ramalho Eanes, mais alto do que eu poderia imaginar, e Manuela Eanes ao lado. «Ali vai o Abilio Curto», informou-me o meu pai «e o escritor Vergílio Ferreira…». Ao fundo, descubro o meu padrinho, Almiro Gomes Lopes. E o senhor Lopes, amigo e vizinho, finalmente sentia-me confortável no meio de tanta confusão, de tanta gente, de uma festa tão impressionante. E o que mais impressionava era a forma como tudo se movimentada à volta de Eanes. Quando ele parava todos parávamos. E quando ele andava todos andávamos. Ele no meio de toda a gente dominava o espaço, o povo rendido, aplaudia, dava vivas ao presidente, queria um “passou bem” do general. Eu, pequenino, pela tenra idade e especialmente pela incapacidade de perceber a dimensão do momento estava aterrado. Ao fim da tarde voltou a chover…

Esse foi o primeiro grande dia da minha vida, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Então, ainda se respirava o ar revolucionário, ainda se vivia intensamente o 25 de Abril e a Democracia ainda não era uma certeza. Mas o meu pai assegurava-me que Eanes era um homem tão valente que já ninguém nos iria roubar a liberdade.

Hoje, ao estarmos de novo perante as comemorações, na Guarda, do dia 10 de Junho, recordo com carinho aquele dia grande da minha meninice e recupero o sermão que Jorge de Sena fez na sessão solene no Liceu: “O Discurso da Guarda”. Talvez muita gente se tenha esquecido ou não saiba, mas esse foi o discurso que recentrou o Dia de Portugal, foi o discurso definitivo do 10 de junho, em que o que disse de Camões, logo de nós, nunca mais ninguém o conseguiu dizer sem soar a patético ou burlesco. Por ser um discurso essencial, entre pensadores e filósofos, publicamo-lo na íntegra nas páginas seguintes.

Luís Baptista-Martins

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