1. O delírio está instalado. A Ministra da Justiça afirmou que o Governo pretende avançar com uma proposta de alteração do Código Civil, para que os animais tenham um «estatuto intermédio entre as coisas e as pessoas». Tamanha alucinação, insuflada por uma recente e bizarra manifestação no Campo Pequeno e pela visibilidade parlamentar do PAN, significa o quê? Que vai ser concedida personalidade jurídica aos animais? Tal solução, insólita no contexto europeu, significaria introduzir o caos no ordenamento jurídico. Por outro lado, se não são pessoas nem coisas, são o quê? Antes de mais, convém esclarecer que a palavra “Coisa” no sentido comum nada tem a ver com o conceito jurídico correspondente. No primeiro caso, normalmente designa algo que se pretende depreciar, vulgarizar. Já no direito é diferente. Segundo o Código Civil, «diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas». Ou seja, as coisas, nas suas diversas categorias, não são desvalorizadas por serem «coisas». Têm é uma importância instrumental, por poderem ser apropriadas e constituir um património afecto a alguém. E, por sua vez, dão lugar a um tratamento jurídico diferenciado no direito penal, onde a sua ofensa sempre foi considerada crime de dano. Todavia, no caso dos animais, a sua protecção foi reforçada, com a recente tipificação do crime de maus-tratos a animais domésticos. O que é o bastante para salvaguardar a sua integridade e dignidade enquanto seres vivos. Por outro lado, o direito público de carácter ambiental e cinegético acautela a protecção de certas espécies. Estas campanhas não pretendem defender espécies ameaçadas ou têm sequer preocupações de ordem ambiental. Essas sim, merecedoras de toda a nossa atenção. Os seus promotores elegeram destinatários precisos: franjas urbanas com animais de estimação, bem pensantes, que acham as touradas uma “selvajaria”, julgam que o bife que lhes cai no prato é criação do espírito santo e adoram os “ares do campo”. E para ajudar ao alvoroço, tomam-se a si próprios como agentes civilizadores indispensáveis e às suas propostas como uma fatalidade do tempo. No entanto, desconhecem em absoluto a História, a Antropologia, a Economia. Ignoram esta magnífica cosmogonia onde os homens e as bestas participam de um desígnio divino. Passam por cima desta partilha milenar de uma ordem natural, onde há benefícios e utilidades, devoção quiçá sacrificial, mas nunca confusões e promiscuidades. A imaginação literária, com os bestiários e as fábulas, é mais do que suficiente para reconhecer nos animais uma exemplaridade muda e misteriosa. E a prosopopeia, ao atribuir aos bichos qualidades próprias dos homens, é o recurso estilístico que melhor homenageia o reino animal.
2. O aristocrata olha para o plutocrata com genuína comiseração e uma réstia de temor. O segundo olha para o primeiro com ciúme e um fundo de rancor. O aristocrata sabe que a sua legitimidade ecoa no tempo. Que o seu poder não se funda num contrato ou numa votação, mas na linha contínua do tempo e na prerrogativa da violência. Em desuso, é certo, mas nem por isso apagada da memória. E, finalmente, que as suas boas maneiras não são uma bandeira de conveniência, mas o eco remoto de uma supremacia anterior ao compromisso e à negociação. O plutocrata, por sua vez, sabe que a sua legitimidade está amarrada ao presente. Que o seu poder, ainda que real, é anulado pelo esforço em o atingir. Pode exibi-lo com satisfação, mas o fato nunca lhe assenta à medida. E, sobretudo, dificilmente suspeita que o aristocrata, embora receie a competição, jamais temerá a concorrência.
3. À terceira temporada da série “House of Cards”, muita água correu sobre as pontes. Há quem diga que os Underwood são uma alegoria dos Clinton. Não me parece. A série está feita à medida de Kevin Spacey. A fabulosa e escultural Robin Wright está lá por outras razões. Mas esqueçamos o enredo conjugal. O melhor serviço que a série presta ao público é a exposição dos mecanismos do poder supremo nos EUA. Os grandes e pequenos dramas da política. Se retirarmos as circunstâncias locais, tudo isto redunda numa séria reflexão sobre o poder. Não sobre o que os seus detentores fazem dele, mas o que ele faz às pessoas que o detém. E isso, como bom anarca ao estilo de Ernst Jünger, é o que realmente me interessa nesta matéria.
4. A tibieza encontra na grandeza humana como uma qualidade rara, esforçada e exótica. Nada tão longe da verdade. A grandeza está presente ao virar da esquina, num gesto inesperado, numa lágrima que não estava prevista, numa concavidade do espírito que nunca se tinha mostrado, num movimento de coragem onde a alma se agiganta ao corpo, na precisão da flecha que se solta, ou na confiança do sonho que se constrói… Afinal, o que é raro na grandeza não é a sua ocorrência, mas a atenção que ela exige para se revelar aos nossos olhos.
5. De nada serve a solidão a pataco. Assusta, oprime, obriga a estar à defesa e a encontrar culpados. É preciso muito mais do que isso. É preciso agarrar nela, entendê-la como uma bandeira negra, levá-la nos dentes como um sabre, na abordagem e na conquista. É preciso encontrá-la ao virar da esquina, depois da batalha, e não ter medo dos seus segredos, ou das suas dádivas. Deixar que nos tome pela mão, e com ela possamos percorrer os abismos e as searas ondulantes, a luz e as sombras. Pode bem acontecer que, então, vejamos fortalezas derrubadas com um simples sopro, fontes no deserto, girândolas de luz…
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia