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Recentemente, foi apresentada a nova imagem corporativa da Guarda, em sessão realizada no TMG, tendo intervindo o presidente da Câmara e o autor, o designer José Romão. A criação é composta por uma série de logos temáticos, cujo grafismo se inspira, alegadamente, nos cristais de gelo, como foi explicado. O tema não é linear e nele cabem algumas reflexões. Desde logo, a existência de uma marca promocional, associada à Guarda, já era sentida há muito como uma necessidade. Ou seja, pelo valor simbólico, é um dado fundamental numa estratégia de desenvolvimento da cidade. Em Junho de 2006, escrevi um texto bastante crítico sobre o tema, de que transcrevo alguns excertos:

«A Guarda é uma das cidades portuguesas com melhores condições para ser “vendida” como um sítio apelativo. Pela sua especificidade, pela memória, pelo património natural e edificado, pela posição estratégica, pelas capacidades instaladas. Matéria consensual, ao que parece. Recentemente, fiquei a saber que a Câmara veio anunciar uma série de iniciativas no domínio do marketing, englobadas num programa de promoção turística da cidade. Percebi que foram impressas umas T Shirts com a célebre cantiga de amigo atribuída a D. Sancho, exaltando os seus amores pela Ribeirinha. A autarquia corre para “vender” a imagem da Guarda ao exterior. Não obstante, antes de qualquer planeamento, antes de qualquer estratégia a seguir, é fundamental que o debate se alargue e nele participem e dêem o seu contributo o maior número de cidadãos, empresas e instituições, guardenses ou não. Ora, o critério decisivo a preencher nesta questão será o de responder a duas simples perguntas: quais as vantagens comparadas com que a Guarda se pode afirmar junto do público, isto é, que produtos irão integrar a “marca” Guarda? Qual a imagem distintiva que irá dar-lhe visibilidade, poder de atracção?»

Portanto, como é natural, essa estratégia integrada de promoção da cidade era sentida e defendida por muitos: nos media, nos fóruns, no debate político. Em boa hora, veio o novo executivo autárquico dar resposta a este anseio. Todavia, a apreciação favorável acaba aqui. Sobram as razões para a apreensão e o desapontamento. Vejamos porquê:

a) O processo de “adjudicação” do trabalho não é o mais correcto. Porquê contratar um designer do Porto, cuja única referência foi ter já executado alguns trabalhos para a Câmara de Gouveia, quando Amaro era aí presidente? Será que não existem designers locais com talento e ideias?

b) A justificação apresentada por Romão para as suas escolhas é caricata. Ao que parece, um dia, no jardim, durante a sua única incursão à cidade, caiu-lhe no braço um floco de neve. E logo aí, possuído da mesma intuição fulgurante de Newton, quando lhe caiu a maça da árvore, durante a sesta, decidiu executar os tais cristais, como se de um mandamento divino se tratasse. Em seguida, afastou a opção, comum entre designers, de representar “essas coisas” como património e tal. O que, no caso da Guarda, significa que ficou de fora a “igrejinha”, referindo-se à imponente Sé! Em seguida, sugere o cristal como marca promocional da cidade, com adesão do comércio tradicional, incluindo pastelarias. Presumo que devia ter em mente o célebre coração utilizado em Guimarães, enquanto capital europeia da cultura, em 2012. Mas aí havia uma estratégia partilhada por agentes públicos e privados e uma ideia bem definida do que era pretendido e não o que se conhece por aqui.

c) O grafismo escolhido não é o mais indicado: não representa, ainda que de forma conceptual, nenhum símbolo da cidade, ou da região. Nem o património natural ou histórico, nem um produto icónico, nem uma ondulação sugerindo a montanha. A solução encontrada assemelha-se a favos de mel, sugerindo um gregarismo orgânico que é de evitar, nestes casos. Portanto, a simbologia é pobre e incaracterística, podendo servir para promover qualquer outra localidade ou região.

d) Last but not least, existe a razão de fundo. Com pompa e circunstância, foi apresentada a “nova imagem” para a Guarda. Mas imagem de quê? Não se sabe. Fará algum sentido essa criação, sem uma nova estratégia? Uma marca só faz sentido se designar um produto. Qual o conteúdo, a composição, o fôlego, a competitividade do produto “Guarda”? Desconhece-se. Tudo parece decorrer no domínio da propaganda pura a dura. Sucede que, para «devolver a auto-estima» à cidade, como salientou o presidente da câmara, para induzir dinamismo económico, cultural e social, para atrair investimentos e visitantes, não bastam novos símbolos, por muito apelativos que se anunciem. Não bastam instrumentos de persuasão, pois estamos a laborar no domínio da fé. É necessário, ao invés, que a uma nova simbologia corresponda um suporte, um programa. Que não se resuma a uma cartilha de investimento. Que comece por ter em conta que o factor de dinamismo e interacção urbano mais poderoso é a adrenalina social. O fervilhar das diferenças. A erupção da criatividade. Uma oferta cultural consolidada. Nenhuma cidade realmente moderna ignora estes elementos. Salvaguardadas as proporções, de nada vale vestir a Guarda com uma imagem, por muito abrasiva, se ela nada representa. O hábito não faz o monge.

Por: António Godinho Gil

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