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Famílias em terapia de grupo

Tresler

1. A psicoterapia e a terapia de grupo têm andado agora nos noticiários a propósito da depressão que a maior parte dos pacientes, por indicação dos seus médicos, afoga em medicamentos. Os media acharam que era de bom tom começar a apontar alguns exemplos de fórmulas saudáveis de terapia para além dos químicos. A verdade é que o fármaco invadiu de maneira avassaladora, mesmo escandalosa, a vida das pessoas com problemas psíquicos ou de depressão, ou simplesmente de cansaço ou sono, como provam os números terríveis das vendas de antidepressivos, hipnóticos e tranquilizantes em Portugal, agora até estendidos aos jovens. Qualquer psiquiatra que se preze ou simples médico de clínica geral prescreve ad infinitum uma caterva de caixas de medicamentos que por princípio são para ser utilizados em espaços de tempo reduzidos. O tema também aterra porque é fenómeno comum nas notícias de suicídios aparecer a menção à toma regular de antidepressivos ou ao choque com a realidade quando se deixam de tomar sem acompanhamento.

O livro que serve de base a esta crónica (ver no final) atraiu-me por ser escrito em parceria por um famoso psiquiatra (Robin Skynner) e pelo cómico John Cleese, dos Monty Python, em diálogo, a partir de uma terapia de grupo em que o próprio John Cleese participou nos anos 80. Os autores conversam de modo descontraído sobre o que leva as pessoas a juntar-se e sobre como desatar certos nós que a dado momento ameaçam apertar o pescoço dos dois parceiros de matrimónio. O certo é que a conversa começa no matrimónio e as respostas aparecem ligadas aos primeiros anos de vida.

2. O livro, que se estrutura em cinco longas conversas, começa por se interrogar sobre o que leva as pessoas a juntar-se quando se casam. E as terapias de grupo permitem verificar que elas se atraem e se juntam pelas semelhanças que têm e até pelas semelhanças dos seus antecedentes familiares. É como se transportássemos dentro de nós e à vista a nossa “herança” familiar e emitíssemos sinais para os outros, de forma a recriarmos a família na nova relação. Às vezes dizemos que “os opostos se atraem” mas isso será apenas a capa: o interior serão as semelhanças e afinidades no que respeita às atitudes emocionais. Os autores comparam mesmo a situação aos cães que denunciam pelo seu comportamento a família a que pertencem: obedientes e disciplinados em famílias com autodomínio, mais anarcas e desorganizados em famílias com elementos nervosos ou pouco disciplinados.

A ideia de que não somos pré-determinados pela nossa educação cai aqui por terra. Podemos sempre, depois de ter falhado num certo estádio de desenvolvimento, arranjar um mecanismo de substituição que ajude a colmatar uma falha mas se não houver experiências de substituição a vida vai mostrar-nos que esse elemento nos vai falhar. Por exemplo, se nos mantivermos muito dependentes dos pais, isso significa que na adolescência falhámos o estádio de desenvolvimento em que a distância dos pais devia ter sido assegurada em doses equilibradas de forma a criar independência com segurança. O problema pode pôr-se se nós não reconhecermos que falhámos certo estádio de desenvolvimento (por vergonha ou embaraço) já que depois de escondermos essa falha aos outros podemos mesmo escondê-la a nós próprios, enganando-nos. Skynner compara esse gesto ao descer de uma persiana sobre uma emoção: a abertura da persiana provocaria dor e a criança ou o adolescente (ou o adulto) escondem-na, transformando-a mesmo em tabu.

3. O curioso é que na análise dos casais os psiquiatras verificam que os dois parceiros tendem a apagar as mesmas falhas nos estádios de desenvolvimento (sobretudo no controle das emoções). E que depois serão também os próprios filhos do casal a apagarem essas falhas, escondendo-as atrás de ecrãs, passando o ponto fraco, o tabu, de geração em geração. Se a criança não for capaz de lidar com uma determinada emoção (ex. a fúria), também não será capaz de ensinar os filhos a lidar com ela.

Estes ecrãs, que em princípio deveriam proteger-nos e evitar males maiores, espécie de redes de malha fina pelas quais não passaria nada ou quase nada, às vezes não funcionam bem. Basta estarmos cansados, perturbados ou embriagados para às vezes revelarmos características que quase nos surpreendem e que surpreendem verdadeiramente os outros. De repente o ecrã abre-se porque manter o ecrã sempre fechado implica muita energia.

Sendo nós um conjunto de substâncias químicas e um complexo de emoções, sempre em composição diferente, é evidente que também essas combinações diferentes de emoções existem em variações e doses diferentes por detrás do ecrã de cada um. A nossa personalidade seria configurada pela forma como cada um de nós aprende a esconder / controlar as suas emoções, desde a fúria, à inveja, ao medo, à ansiedade, à afeição.

Os autores acabam a primeira conversa (de 40 páginas) aceitando que um casal terá tanto mais probabilidade de se entender quanto mais predisposição tiver de olhar para detrás dos ecrãs que colocou relativamente a certas emoções. Se cada um estiver disposto a aceitar a desilusão de descobrir que é diferente da ideia que fabricou sobre si próprio, maior capacidade terá de resolver problemas quando surgirem situações difíceis com o outro. E a tudo isto se consegue chegar nas conversas em grupo mediadas por profissionais competentes.

(Robin SKYNNER e John CLEESE, “Famílias e como sobreviver com elas”, ed. Afrontamento, Lisboa, 1990)

Por: Joaquim Igreja

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