A família é o núcleo social que dá melhores romances, melhores peças, melhores filmes. O emaranhado de relações potencialmente conflituais, a força dos relacionamentos e dos laços, os contrastes entre pais e filhos, maridos e mulheres, criam um caleidoscópio de cores nunca iguais de núcleo para núcleo e muito interessantes de ver do lado de fora. Fulano(a) atrai, fulano(a) trai, fulano(a) prende, fulano(a) abandona, fulano(a) é escorraçado, fulano(a) arrepende-se, fulano(a) vinga-se, fulano(a) regressa, fulano(a) discute, fulano(a) reconcilia-se, fulano(a) escapa, fulano(a) mente, fulano(a) chantageia, fulano(a) vive no céu e logo a seguir no inferno. Digamos que, como a democracia, é o pior modelo de organização social, à exceção de todos os outros.
E aquilo que vemos e ouvimos na vizinhança ou no bairro e aquilo que fingimos não ver nem ouvir pinta-se de cores extremas nos dramas de jornal, quando um conflito familiar se converte em sangue e o irracional irrompe e sai para a rua. Aquilo que julgamos afastado de nós, pelo jogo de esquecimento em que vivemos, pelos ecrãs que vamos interpondo à realidade, aparece de repente nos jornais e consegue surpreender-nos. Parece um romance e dava romances magníficos. Com nomes falsos aqui vai a história pescada em meados de setembro num jornal de tons vermelhos. Eulália vivia com o marido (Filipe), ambos na casa dos 55-60 anos, uma relação desgastada mas apaixonara-se pelo homem (solteiro) a quem fazia a limpeza da casa (Hipólito). Alguns meses depois de começada a relação com Hipólito, Eulália diz a Filipe que se quer separar e começam a combinar o divórcio. Num dos dias em que Eulália anda a retirar coisas de casa e a levá-las para casa do novo apaixonado onde vive há uma semana, aquela aparece imprudentemente com Hipólito, com este a entrar em casa do ainda marido e a carregar coisas. A raiva sobe em Filipe, que acaba por ir buscar a caçadeira e disparar sobre Eulália e Hipólito, que morrem em seguida. O assassino foge, vai ter com um filho perto de Coimbra, mas é rapidamente apanhado pela GNR. Simples? Querem mais ingredientes? O casal desavindo não tinha filhos comuns mas Eulália tinha 4 filhos de um anterior casamento; o primeiro marido de Eulália e pai dos seus filhos tinha sido assassinado à facada pelo próprio pai. Hipólito, o novo amor de Eulália, era solteiro mas tinha uma filha de uma anterior relação. O assassino tinha dois filhos do primeiro casamento e foi um deles que foi procurar depois do crime. Curioso ainda que a primeira mulher do assassino Filipe vivia ainda com um filho (20 anos depois da separação), numa dependência da casa atual do ex-marido. Pelo meio ainda muita violência doméstica de Filipe, a ideia de que Eulália quereria deixar as dívidas ao marido após a separação e de que “não andaria bem da cabeça e tomava medicamentos em excesso”, segundo uma testemunha. Parece ficção? Não, é a esclarecedora realidade, com ingredientes para uma magnífica ficção e, pensemos bem, coisas que vemos por perto todos os dias.
A família nos romances ora é aquele romantismo sem jeito nem adesão à vida ora nos atinge em cheio pelas fórmulas que vem copiar à realidade, ultrapassando-a. Os livros de Daniel Pennac na saga Malaussène põem-nos os cabelos em pé pelas famílias desestruturadas a que o autor dá lógica e até encanto. Em Belleville, cidade do subúrbio de Paris, uma mãe que teve filhos de vários homens sem nunca se ligar a nenhum, vai juntando em casa filhos de várias cores e raças, que ali continuam a viver mesmo depois de começarem a trabalhar e de arranjarem parceiros, uma dúzia de pessoas em casa, cada uma com um nome mais estranho que outra (Verdun, nome de batalha; Puto; Senhor Malaussène; É um Anjo). Em “Cristãos e Mouros”, um dos filhos (Puto) desafia mesmo os irmãos e a mãe dizendo que faz greve de fome até saber quem é o seu pai.
Em Mia Couto a família oscila entre a normalidade da violência, a hegemonia masculina ou a sensação de que cada um vai seguindo o seu caminho, apesar do contrato de casamento. Num dos contos de “Estórias Abensonhadas”, o casal Diamantinho-Tudinha Rosa (grávida) faz uma visita aos vizinhos Ananias e Maria Cascatinha. Tudinha Rosa está no fim da gravidez e na casa dos vizinhos começa com dores fortes. O parto anuncia-se mas o bebé está a custar a sair e logo se interpreta, segundo a sabedoria tradicional moçambicana, que ali houve traição. Instada a dizer quem foi o seu amante, Tudinha diz que foi Ananias, o vizinho anfitrião. Há logo bulha entre os homens e o amante descoberto é levado muito combalido para o quarto para onde se recolhe também Tudinha, agora já com o bebé cá fora. Entretanto Diamantinho, choroso, na sala, lamentava-se da sua sorte e invocava feitiços contra Ananias. Dona Cascatinha veio para a sala consolar o marido traído e acompanhou-o de regresso a casa. «Diz-se que Maria Cascatinha nunca mais voltou».
E assim se fazem as coisas. A ficção e a realidade não andam assim tão longe. Um feliz Natal com a melhor família possível.
(Daniel Pennac, “Cristãos e Mouros”; Mia Couto, “Estórias Abensonhadas”)
Por: Joaquim Igreja