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Falsa bandeira

Não é preciso perceber muito dos meandros do poder político na Turquia para concluir que há algo de errado no pós-golpe de Estado. Como é possível em tão poucos dias haver logo 6 mil detidos, mais de 7 mil polícias expulsos e 2.500 juízes exonerados, números que crescem cada dia que passa. Para além do óbvio – que tempo teve a Justiça, ou que dela resta, para sancionar tanto? –, somos surpreendidos pela grande planificação do pós-golpe, mais completa, exaustiva e preparada do que o próprio golpe de Estado e que, de forma cada vez mais evidente, nos obriga a concluir que realmente o golpe não surpreendeu as autoridades turcas. A resposta ao mesmo tempo surpreendente e cada vez menos surpreendida de Erdogan deve suscitar preocupações que talvez não devam chegar a ser conspirativas, mas nem por isso deverão ser desligadas de uma lógica contra-golpista de instauração de um regime absolutista que se permite o uso arbitrário do poder. Nem se vê outra forma de interpretar o absurdo de se conceber trazer a pena de morte de volta, com o detalhe macabro de se pensar aplicá-la com efeitos retroativos.

Este jogo de sombras lembra as manobras encobertas que na linguagem dos especialistas levam o nome de “falsa bandeira” (“false flag”), termo oriundo do uso deliberadamente enganador de bandeiras, diferentes da devida, por navios militares em contextos de batalha naval. Por extensão, qualquer jogo ou guerra de sombras como este pratica-se precisamente com o intuito de que, levantando-se o nevoeiro criado, a realidade apareça mudada como de outra forma não teria sido possível.

Decerto, sob esta atmosfera sombria é tão difícil fazer luz num sentido como noutro. Pode acontecer que Erdogan não seja tão maquiavélico quanto vai parecendo que é. Mas em política, sabemos bem, o que parece é. Seguramente, Erdogan sabe-o como o deverão saber os representantes políticos da Europa que, no entanto, têm mantido uma interesseira ambiguidade para com o ambíguo regime de Erdogan. Como poderia não ser também maquiavélica a atuação europeia quando se aceita ser protagonista pagante no negócio dos refugiados devolvidos à Turquia? Em política, repetimos, o que parece é. E os que se parecem desta maneira – sacrificando princípios ao interesse do incremento ou conservação de poder – suportam-se até se verem expostos à violência.

Por pouco que saibamos sobre causas e motivos da ação de Erdogan nestes dias, os efeitos e consequências são evidentes e são de natureza danosa. Espezinham-se padrões de exigência europeus, supostamente elevados, no que respeita a direitos humanos, ao funcionamento de regras básicas do Estado de direito, às garantias fundamentais, em suma, àquilo que deveria distinguir a Europa como um projeto comum com valor. Padrões espezinhados com a cumplicidade, de antemão garantida, da Europa que pagou a devolução de refugiados sírios. Sobretudo da Europa dos governos europeus, que seguem lógicas de “cada um por si”, e que manietaram a Europa da União. A capacidade que esta terá de segurar Erdogan é decisiva e é, ao mesmo tempo, a capacidade que terá de reencontrar de transcender as lógicas nacional-egoístas dos seus Estados membros.

Por: André Barata

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