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Experienciar

Tresler

1. Um cavalo puxa uma carroça, uma rapariga e o seu pai acompanham o cavalo no seu esforço à chegada à casa rústica na montanha, no meio de uma ventania desatada e contínua. Imagens de resistência e luta na defesa de um reduto isolado repetem-se ao longo de todo o filme, duas horas e tal a apresentar uma semana, dia após dia. Dias sempre iguais, borrasca lá fora, resistência lá dentro, uma batata por alimento diário. Quando saem, a luta contra o vento na ida ao poço ou ao estábulo. No final, a derrota: o poço seca, o cavalo desiste de comer, a luz desaparece mesmo. Uma angústia que entra dentro de nós ao sentirmos (sim) o fim a aproximar-se e as personagens dóceis a aceitá-lo. Tudo isto com pouquíssimos diálogos, banda sonora a martelar-nos a cabeça. O Cavalo de Turim, filme recentemente passado na Guarda, tem todos os ingredientes simultaneamente para irritar e para nos apanhar na onda: imagem a preto e branco, longos planos, um sentido do tempo em cada cena aparentemente pouco económico, lento, repetitivo e meticuloso, fora de moda. Mas as duas horas e tal acabam depressa afinal e deixam-nos atordoados, como se tivéssemos apanhado um murro na nuca.

Noutro canto da cidade um aluno envolve-se, a pretexto do conselho de um professor, na leitura presumidamente irritante do Memorial do Convento, primeira experiência à volta de Saramago. À terceira página a impaciência já vai alta mas o jovem lembra-se da observação do professor de que, quando a saturação começa a chegar, a leitura faz-se em voz alta, como o autor recomendou, maneira de assegurar a musicalidade e a impressividade das ideias. A certo ponto a rainha já dorme no seu ninho mal cheiroso, o odor já anda por ali, o leitor começa a construir a sua conotação negativa do palácio real. Entretanto poucos capítulos depois, quando a saturação começa a repousar, a cena real desloca-se para o auto de fé nas ruas de Lisboa, entram as personagens que o leitor vai erigir como heróis e as coisas começam a compor-se. O aluno ainda se pergunta “Porque é que este indivíduo não se ficou pela Azinhaga?” mas a raiva já passou e ao segundo dia acha já alguma graça. Não chega ainda para recusar o convite de ir à praia fluvial de Aldeia Viçosa ou de Valhelhas mas entre um capítulo bem sucedido e outro em que algumas linhas ou páginas se comeram, a leitura começa a equilibrar-se. E começa a ganhar força na cabeça do leitor a ideia fortemente martelada pelo professor de que uma leitura eficaz e bem sucedida não é só de prazer, como queria Daniel Pennac.

Terceira experiência. Entrada numa exposição de pintura moderna numa cidade pequena. Mário Cesariny na Guarda. Galeria sem gente, linhas estranhas de um código com muitas palavras intraduzíveis, pouca disponibilidade interior de quem vai ver, exceto a vontade de se desafiar e de vencer a dificuldade de interpretar. Vontade de chegar à exposição e que “aquilo” passe para o observador como emoção estética sem referências eruditas, que “aquilo” funcione. Sem uma explicação, algo ficará no limbo da interpretação. Mas, diante de alguma frustração, na próxima vez aconselha-se a verbalizar o pasmo, a deceção, iludindo o tempo. Por exemplo, indo acompanhado. Uma dificuldade conversada resultará em menos estupefação e em melhor tradução, como se duas pessoas pudessem possuir palavras diferentes do mesmo dicionário. O difícil e o obscuro podem vencer-se assim com solidariedade e ilusão do tempo.

Uma visita a um sítio está longe de se limitar às lojas e instituições abertas. Pode ser também conhecer a sua história e a das almas que ali conviveram. Mesmo quando as casas estão desabitadas. Reavivar a memória, conhecer o passado pode ser conseguido através de fórmulas como a dos Passos à volta da Memória – A presença judaica na Guarda, na zona velha da cidade. E é eficaz esta representação, simultaneamente integradora e impressiva, na sobriedade da atriz que nos conduz. Lição: na próxima cidade onde for, depois das visitas a sós procure as visitas guiadas.

2. As ideias de experiência e de contraste são das ideias mais aliciantes dos períodos que chamamos férias. Procurar momentos de silêncio quando adoramos o barulho. Deixarmo-nos envolver na multidão-confusão das ruas das cidades grandes se nos assumimos como solitários. Arriscar uma ópera se sempre estivemos de pé atrás. Entrar num espaço de exposição mesmo sem saber o que lá está. Ir a um parque aquático ou ao jardim zoológico quando aquilo parece só para miúdos. Enfrentar o património construído ou entrar numa igreja silenciosa para intervalar com o bronze da praia. Ir ao cinema mas sem pipocas. Visitar uma ou duas cidades para lá da fronteira, apesar da crise. Arriscar pintar, arriscar representar, arriscar escrever. E todos temos ainda os passos seguintes a dar, aqueles em que ainda hesitamos, com medo do aborrecimento, do juízo dos outros ou de nos tornarmos diferentes da mediania. Um passo adiante talvez nestas férias.

Por: Joaquim Igreja

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