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Estória carnalavesca

Hic et Nunc

Desde que entrei no mundo do trabalho nunca trabalhei na terça-feira de Carnaval. Nem em 1993, ano em que o atual habitante do palácio pink fez questão de “não dar” tolerância de ponto. Na passada terça-feira resolvi seguir a tradição e, claro está, não pus os pés no serviço onde sou funcionário, mesmo gastando um dia de férias, contrariando desta forma a posição governamental de considerar o dia de Carnaval como um dia (a)normal de trabalho. Assim, fiz questão de comemorar a data, mascarei-me, fui folião e, no final do dia, como é uso e costume, convidei amigos próximos para jantar.

A noite começou com uma ginjinha no Rossio, a que se seguiu a opção Bairro Alto, uma caipirinha e a escolha de jantar no típico e bonito restaurante de comida portuguesa o Pap’Açorda. Entrámos, sentámo-nos na mesa do canto e eis-nos completamente surpresos quando percebemos que os vizinhos da mesa do lado eram também cinco foliões divertidos, amantes da boa cozinha e mascarados de figuras públicas do mais respeitado que há. Imaginem que estes brincalhões estavam tão bem disfarçados que não se conseguia notar qualquer diferença de Passos Coelho, Miguel Relvas, Vítor Gaspar, Álvaro Santos Pereira e Francisco José Viegas. Passada uma primeira fase de perfeita admiração e perplexidade, a nossa atenção virou-se para o empregado, para o pedido do prato e do bom alentejano, que efetivamente bebemos. Todavia isso não nos impediu de por momentos ouvir o que se discutia na mesa ao lado da nossa.

– Então Vítor – perguntava Miguel Relvas – não bastava termos já pago em juros 289 milhões de euros aos patrões da troika e não amortizarmos nem um cêntimo, enterrámos, vindo do erário público 600 milhões de euros para segurar o BPN e vamos vendê-lo por 40 milhões aos angolanos, ainda vamos pedir ao Schauble mais 4.300 milhões de euros para o fundo de resgate de 2012?

– Nada disso. A culpa é toda do Rosa Mendes que só sabe falar mal de Angola. A coisa há-de resolver-se nem que seja com recurso a mais impostos aos funcionários públicos e reformados.

Passos, assistia a toda a conversa quando de repente disparou:

– Quero lá saber dessas crónicas de escárnio e mal dizer. A direção da RDP pediu a demissão e eu disse e reafirmo que não estou nada preocupado.

– Isto tem a ver – acrescenta Francisco José Viegas – com os problemas das novas regras do acordo ortográfico. O Vasco da Graça cria cada problema.

– Que estás para aí a dizer – contrapõe Pedro – Discutia-se a situação financeira e vens tu com essas lamechas. Eu já esclareci que o governo não tem nenhum esclarecimento a fazer acerca dessa matéria.

Gaspar entra de novo:

– O importante é mostrar esta semana aos agentes da troika que assinamos o acordo de concertação onde na foto de família estavam sindicatos da UGT, alterámos o calendário dos feriados, vamos mexer nas freguesias, demos a volta ao IRS dos mesmos de sempre, vamos colocar os funcionários públicos na mobilidade, só faltando mesmo começar por rasgar a concordata e obrigar a igreja católica a pagar impostos e vais ver que o Wolfgang e a Merkel não têm razão nenhuma para continuarem a oferecer essa quantia em dinheiro.

– Veremos – diz novamente Relvas, com ar de sonhador/ideólogo – Olhem que a partir da avaliação de junho a coisa pode dar para o torto. Por acaso não viram a manif da CGTP com centenas de milhares de trabalhadores na rua? O desemprego a nível recorde. Mesmo tendo um povo pacífico podem acontecer situações idênticas ou mesmo iguais às que ocorreram na Grécia.

– Qual quê. Deixem-se de pieguices – diz Passos – isto é para levar em frente custe o que custar. Qual sensibilidade social qual quê. Quem está mal, não tem ou perde o emprego, muda-se. Emigre. Quero lá saber se há pancada ou não. Ninguém se mete comigo, pois não tenho medo de enfrentar manifestações como a de Gouveia. Não sou como Cavaco, eu enfrento-os. Isto ou vai ou racha. Ou eu não me chame Pedro Passos Coelho.

A conversa decorria animada quando Relvas pergunta ao apagado Álvaro Santos Pereira:

– Então homem não dizes nada?

– Bom pessoal, na conjuntura económica que vivemos efetivamente só sei que há economia em tudo o que há e atrevo-me mesmo a citar Gilles Lipovetsky quando afirma “Hoje há demasiado de tudo”. Até miséria.

Nesta altura foi a pausa para o café. Seguiu-se o pedido da conta e um comentário de Francisco José Viegas:

– Isto afinal foi caro. Então o IVA na restauração já está a 23%?

Todos os outros quatro olharam para ele com ar perplexo, mas não fizeram qualquer comentário.

A noite de Carnaval deste ano da graça de 2012 valeu a pena e, citando Pessoa, “Tudo vale a pena se a alma não é pequena” e, já agora para aguentar tudo isto haja Alma até Almeida.

Certo dia Vitorino Nemésio foi alcunhado de cavalgadura numa aula da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde lecionava e, Se Bem Me Lembro, o bom do professor chegou à TV Marcelista e fez uma belíssima exposição acerca do cavalo e do cavaleiro ao longo dos tempos. Para quem viu e ouviu sabe perfeitamente que o seu autor não saiu beliscado. E de besta passou de certeza a bestial.

Por: Albino Bárbara

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