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Estados de desalma

Desde sempre soube que não sou de relações fáceis. Ele há dias em que consigo zangar-me com dez pessoas, ou dez vezes com a mesma pessoa, caso não encontre mais ninguém. Nem eu própria escapo a estas minhas iras, à falta de outrem, zango-me comigo. O que ainda não tinha descoberto é que também consigo zangar-me com as palavras. Claro que o resultado destes desaguisados só pode ser o de ficar sem frases. Assunto grave, nesta coisa de opinar.

Depois de muito discutir com um texto que não cedeu a tomar o meu caminho, não houve volta a dar, tive que o destruir por completo. Um clique e zás: lixo. Mostrei-lhe quem manda! Continuei sem palavras que dissessem o que queria dizer, mas saí por cima. Pior que não ganhar às palavras, só mesmo se não tivesse opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Felizmente (neste caso, será mais infelizmente) opinião, firme, consolidada e inalterável é coisa assumida e garantida. Amparada por estas duas, é óbvio que não será a boa da arrelia com as palavras que me vai calar. Se não arranjar minhas, vou pedi-las emprestadas. Até conheço umas quantas pessoas que as têm de muito mais qualidade que as minhas. Querem ver? “A inclusão só ocorre quando cada individuo pode influenciar o ambiente em seu proveito”.

Perguntando, como é que alguém pode influenciar algo que é dominado por quem não lhe reconhece direitos iguais aos seus? Responderíamos, não pode. Porque quem age com desprezo pelos direitos dos outros é capaz de muito pior que usurpar lugares de estacionamento reservados a quem tem limitações de mobilidade. Consegue agudizar a perversidade da desculpa de que “é só por um instantinho” através de insinuações como “esta gente devia ser esterilizada”, passando o desrespeito para quem tem limitações mentais. Por mim, acho que a alimentar tudo isto estará a desvalorização das más atitudes e a leveza de espírito com que as aceitamos. Revolvendo constantemente a própria consciência, de forma a que só apareça a parte correta, vamos calando o reparo que se impunha aos estacionamentos abusivos, encolhendo os ombros às expressões racistas. Calhando, até achamos que as pessoas que assim agem nem são más de todo. O problema é que são más, completamente más e capazes de cometer as maiores injustiças e atropelos individuais, bem como arregimentar uns milhares em prol da sua maldade.

Numa altura em que vários acontecimentos pouco desportivos em Alcochete, nada políticos, ou pouco recomendáveis, aqui ao lado, na ponta da Europa, no lado de lá do Atlântico, fazem lembrar os tempos em que imperava a lei do mais forte, talvez fosse boa ideia voltar a exercitar o civismo. Pela parte que me toca, já que nunca estacionei no lugar dos outros e reconheço a todos o direito à reprodução, vou é tratar de me zangar, ainda mais, com quem o faz e menos com as palavras. Já que quanto mais me zango, mais elas se me escondem. Deixam-me sem saber como contrariar o preconceito e consequentes afrontas aos que, não se encaixando na filosofia do ordenamento, hierarquizado, dos pacotes de arroz nas prateleiras de supermercado, incomodam os adeptos da padronização.

Por: Fidélia Pissarra

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