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Ernesto Veiga de Oliveira: A Etnografia

1910-1990 (http://www.youtube.com/watch?v=BeJI9weVxTM)

Para citações, para saber de Portugal, é suficiente dizer Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Eanes Pereira, e passamos a ter em frente de nós uma panóplia de saberes e conhecimentos, como nunca se tem produzido em país nenhum. É certo que Erick Hobswawm tem produzido, com a sua colecção a Era do Capital, A Era da Revolução, a Era dos Extremos, uma admirável síntese do que tem acontecido na Europa no milénio mil, anterior a este de dois mil. Como José Mattoso e a sua ilustração sobre a idade média de Portugal. Escritores sem par, ensinam como foi a vida no passado e como essa forma de viver acaba e transforma-se em outro tipo de História. Do José Mattoso, já tenho falado muito. Do Ernesto, que não pode ser lembrado sem o seu amigo íntimo Benjamim, escrevi parte de um livro datado em Dezembro de 1989: Estudos em Homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira, coordenado por Fernando Oliveira Batista e outros, editado Pelo Instituto de Investigação Científica. O meu texto intitula-se A Etnografia, memória de História, páginas 305-311.

Título que quero salientar a relação que existe entre a realidade material, palpável, positiva. Era a forma de organizar as lembranças de um passado que, para, como eu denominava, os Ernestos tinham terror que fosse desaparecer e não ficasse lastro nenhum do Portugal Eterno. A vida mudava a uma velocidade inaudita: onde haviam arados, começaram a aparecer tractores, preparar o adubo já não era com bosta de animal, ramos de gesta, misturando tudo num fosso, tapar e deixar até apodrecer. Passou a ser com adubo artificial, que queimava as mãos e secava os olhos, causando cegueiras nada desejadas pelos meus amigos. Era a época do Portugal pobre, essa época que tem voltado a existir no dia em que escrevo estas letras. Aos 32 anos, Ernesto já era Advogado, com estudos especializados, em 1947, em Ciências Históricas e Filosóficas. Foi director do Gabinete da Função Pública, no Porto, quando apareceu no poder o ditador. Honesto e recto como ele era, não aceitou esta tomada do poder, menos ainda por uma ideologia fascista, aliada ao franquismo falangista de Primo de Rivera, perante um homem de pensamento socialista, como Marx e Durkheim. Reuniu os seus subalternos, anunciou que se retirava do seu cargo, escreveu uma carta ao ditador que não quis enviar sem, antes, lê-la à sua equipa, disse, como ele próprio me contara em casa: vou-me embora, perco o meu ordenado do qual vivo, mas a minha partida não vos obriga a sair comigo, há liberdade de acção. Foi assim que ficou livre para fazer o que mais estimava: percorrer a pé o país todo, juntando-se ao grupo do António (Jorge Dias), o músico Fernando Galhano, a mulher de António, Margot e, mais tarde, o mau grande amigo Benjamim Pereira. Foi em 1932 que conheceu o Jorge Dias e aceitou o seu convite para fazer parte do movimento pioneiro Centro de Etnologia, que acabou por ter um Museu para guardar as peças antigas encontradas no seu deambular pelo mundo rural, partes urbanas, aldeias e villorios.

Tive a grande sorte do conhecer em 1981, na rua, pela que andávamos Brian O’Neill e eu, após acabarmos o nosso trabalho do dia no Instituto de Ciências Gulbenkian. Nunca esqueço esse grande abraço que Ernesto e eu cruzámos, com um beijo nas bochechas, à maneira francesa. A partir desse dia, passámos a ser amigos íntimos. Ou eles vinham a minha casa, ou eu ia à deles. Debatíamos antropologia e as diferenças e semelhanças entre etnografia e etnologia. Mas não apenas. Foi Ernesto que me disse um dia: Raúl, os amigos no se tratam por doutor ou por si, doravante somos Ernesto e Raúl e por tu…Perante tão grande encómio, eu fiquei feliz. Ainda me lembro o dia: o de São João, esse carnaval no Porto. Estávamos na minha cozinha a jantar às sete da tarde, não tinha reparado eu que o sol de Junho batia nos seus olhos. Por simpatia, não se queixou. Eu, na minha apalavrada sobre a Antropologia, não tinha pensado no sol, até o Benjamim perguntar, na sua gentileza, perguntou se podia baixar o estore.A conversa continuou até 1989, esse dia em que estavam na minha casa, saíram a seguir ao lanche…e nunca mais o vi. Teve uma morte dolorosa, ao longo de mês e meio.

Ernesto e Benjamim sabiam tanto de ciência etnográfica e etnológica, que aprendi muito de Portugal com eles. Parecia-me injusto que estes sábios não ensinassem na Universidade. Começámos com um convénio: o Ernesto dava aulas às minhas turmas, e aos Sábados de manhã, ele proferia, como Benjamim Pereira, aulas de Museu, no sítio próprio, no Museu de Etnologia criado por eles, mas sem licença para mostrar ao público. Os meus estudantes iam às 9 da manhã, e a aula acabava perto do meio-dia. Eram as melhores aulas, com artefactos em exibição e a explicação da sua utilidade. Aulas proferidas ao Sábado, duas vezes por mês.

Quando Ernesto e Benjamim, já não podiam dar essas aulas, o primeiro tinha falecido e o segundo era tímido, criei no ISCTE a Aula Ernesto Veiga de Oliveira, para serem proferidas por museólogos ou outros especialistas em etnografia. Sempre houve esse debate: se era etnografia, etnologia ou antropologia o nome da nossa ciência. Debate que não tem parado.

Ernesto adorava pregar partidas e contar histórias picantes. Como essa de que um dia, após percorrer o Alentejo, quiseram dar-se um luxo e pernoitar na Pousada de Elvas. Tinham andado imenso, dormiam em tendas, estavam pouco prestáveis e foram expulsos da pousada…

O meu amigo foi-se embora a 19 de Janeiro de 1990, dia prévio ao meu aniversário e a uma conferência que devia proferir em Coimbra. Falei com Benjamim e disse-me que o Ernesto teria cumprido com o seu dever, pelo que devia ir a Coimbra.

Fiquei partido em dois: o meu dever, era acompanhar ao meu amigo e colega, mas também imitar o seu comportamento. Proferi a minha conferência, e, antes de começar, com lágrimas nos olhos, anunciei que Ernesto Veiga de Oliveira tinha partido e que falava na sua representação, como homenagem ao amigo….que nunca mais vi desde que esse dia, como narrei antes, saiu da minha casa a contar histórias verdes…a sua delícia e prazer.

Não sou homem de fé. Mas sim, Ernesto Veiga de Oliveira mora na aula que eu criei em Março de 1991. A primeira a falar, foi a Professora Nélia Dias, e também o amigo do amigo, Joaquim Pais de Brito

Ernesto Veiga de Oliveira, és a etnografia viva em Portugal, cultivada hoje em dia pelo Benjamim e os seus discípulos.

Viva, Ernesto!

Por: Raúl Iturra

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