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Em princípio, concordo

Não é só da discussão que nasce a luz: o esforço de querer concordar com alguém aproxima-nos do ponto de vista dele.

Discordar tem graça quando se é muito novo porque ajuda a construir uma identidade onde, a bem ver, não sobram características distintivas. A nossa cultura favorece a discordância automática, associando-a à afirmação da personalidade. Ser contrário é ser corajoso e livre e desobediente. E assim se fomentam milhões de pequenas rebeliões quadradas, escusadas e previsíveis. A maioria destas oposições é puramente antitética e, como tal, só se distingue da outra posição por inverter o sinal. Vem dar ao mesmo, à maneira de um espelho. O que acrescenta quem ouve propor, por exemplo, que se deve proteger os melros e responde que melhor seria que fossem todos exterminados? É pena que estas contraposições simplórias e parasíticas passem como provas de «diferença». Mas que diferença fazem? Nenhuma. Tanto fazem – é uma das consequências nada «paradoxais» da massificação mental dos nossos dias. Cada ser humano deseja uma opinião diferente acerca de todas as coisas: haverá maior condenação à uniformidade? É como viver num país em que cada habitante, todo contentinho, insiste em usar um chapéu diferente dos compatriotas. Mas, mal chega um estrangeiro, classifica-o para todo o sempre como o estranho país em que toda a gente anda de chapéu. Este ambiente de pseudodistinções é tão concentrado que já se desconfia de quem concorda connosco: «Porque é que este está a querer dar-me graxa? Porque é que não diz o que realmente pensa? Será para me calar? Julga que me engana ou quê?» Assim sendo, só a discordância conforta, assegurando o culto superficial da sinceridade. A concordância é tida como uma estratégia – um fingimento para melhor poder adormecer a vítima e zurzir-lhe depois.

Na verdade, as pessoas evitam concordar porque dá mais trabalho e obriga a discutir mais seriamente. Afinal, concordar é tão difícil e complexo como formar uma opinião. E quem sabe quem tem razão, sendo sabido que a razão é coisa sobre a qual é quase tão difícil concordar? E quanto a tê-la, nem pensar.

Por: Miguel Esteves Cardoso

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