Conheci o Doutor Pimentel em 1993, quando cheguei à Guarda. Morreu há uma semana.
Não é o facto de ter tido o privilégio de ser seu amigo que me faz escrever esta crónica; nem o reconhecimento das suas múltiplas qualidades enquanto ser humano, nem mesmo a clássica tentação de recorrer ao elogio póstumo.
O que me leva a recordá-lo aqui é o bom uso da memória, a única defesa que vamos tendo – nós, os que não temos um deus à mão que nos socorra – perante a escandalosa realidade da morte.
Ao longo da vida, todos sem exceção se vão cruzando com pessoas mais ou menos interessantes, mais ou menos válidas, mais ou menos importantes na pegada que deixam. Nem todos os melhores, no entanto, procuram o reconhecimento público e mediático, tão próprios dos nossos tempos e tão efémeros como a nuvem que passa.
O Doutor Pimentel era um SENHOR, um daqueles indivíduos superiores, inteligente e culto, com um sentido de humor esmagador (ou irónico, ou mordaz, ou repentista ou o que lhe queiram chamar); escondia atrás de um pseudo-desprendimento uma cultura geral acima da média, somando a isto uma lucidez clínica e uma destreza cirúrgica que apenas encontrei em mais dois ou três cirurgiões ao longo da minha vida.
Pertenceu a uma geração de médicos do hospital de Sousa Martins que iniciou uma era de modernidade que a minha geração aproveitou e desenvolveu. Sucedeu a uma velha guarda onde se recordam nomes como os de Silvano Marques, Martins das Neves, Afonso Paiva, Pissarra de Matos, Baeta de Campos, Limão Vieira, Alberto Garcia, Raul Saraiva e tantos outros.
Com gente como Carlos David, José Guilherme, Bordalo Matias, Amélia Roque, Reis Pereira, António Lourenço, Fernando Pessoa, José Duarte, Ferreira Marques, Luísa Pedro e muitos outros, já no final do século XX organizaram serviços, estruturaram unidades, criaram regulamentos e formaram novos especialistas.
Sem querer ser injusto para ninguém, o Doutor Pimentel foi o melhor de todos.
Deu a esta casa que é o hospital de Sousa Martins e a esta terra que é a Guarda muito mais do que algum dia foi reconhecido. Espero que um dia o seja.
Fugiu dos holofotes e da promoção social, vivia na sua discrição snob e superioridade intelectual olhando um mundo que, em muitos aspetos, desprezava.
Rodeava-se daqueles em quem confiava tentando sempre disfarçar a imensa bondade e generosidade denunciada por quem o conheceu bem.
Aprendi muito com o médico mas muito mais com o homem e pretendo dar sempre, enquanto puder, um bom uso à minha memória.
Que dê também bom uso a essa memória, o hospital, a terra e as pessoas que tanto lhe ficaram a dever.
Até sempre, Doutor Pimentel.
António Matos Godinho, médico do hospital de Sousa Martins