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Dos Media à Rede: o caso de beppegrillo.it

Razão e Região

O que se passou nas recentes eleições italianas dá que pensar. Porquê? Porque um movimento saído do nada se transformou na primeira força política italiana. O «Movimento Cinque Stelle», de Beppe Grillo, obteve na Câmara dos Deputados 8.689.458 votos, 25,55%. Este resultado fez dele a primeira força política italiana, à frente do PD e do PdL. Mario Monti («Rigor Montis», como lhe chama, ironicamente, Grillo) ficou-se pelos 8,30%. Grillo e Berlusconi foram os grandes vencedores das eleições. Tendo-se tornado um proscrito do sistema televisivo, depois de ter contado na TV uma sarcástica anedota sobre os socialistas de Craxi, Grillo fez da sátira política o centro do seu discurso, nas praças, teatros ou pavilhões desportivos italianos, mobilizando um público farto da classe política. O seu blogue surge em 2005, mas três anos depois já era considerado um dos mais influentes do mundo. O movimento M5S é criado em 2009, iniciando a sua movimentação nas eleições autárquicas e reforçando cada vez mais o seu peso político. Não se trata de um movimento qualquer. Movimento da rede, vive da revolta ética e de uma retórica cómico-sarcástica contra a classe política e contra o establishment mediático. Nasceu, desenvolveu-se e consolidou-se na rede: beppegrillo.it. Tal como Berlusconi, também Grillo se alimenta da revolta ética, mas no interior de um novo paradigma: movimento reticular, procura dar voz à novíssima onda dos «indignados. Do que se trata é de algo muito forte que vem emergindo na sociedade, sem que os agentes tradicionais (partidos) lhe estejam a dar a devida atenção, não só incorporando esta nova lógica da comunicação, sem fins puramente instrumentais, mas sobretudo reconfigurando-se radicalmente em função do novo paradigma emergente.

A verdade é que se Berlusconi representou, a seu tempo, uma viragem relativamente à forma tradicional de fazer política, radicalizando o modelo mediático de comunicação («catch all media»), que em teoria política se chama «catch all party», agora Beppe Grillo está a fazê-lo também, mas traduzindo em política a emergência da rede nas nossas vidas e a sua extraordinária capacidade de mobilização instantânea, apelando a todos sob a forma de apelo a cada um, individualizado («catch all net»). Castells chama-lhe «mass self communication», comunicação individual de massas. A rede permite a emergência da singularidade sem recurso a organizações, apoios, gatekeepers, dinheiro: «somos todos jornalistas», diz Grillo. Requer simplesmente genialidade individual. Grillo começa a propor formas de democracia pós-representativa, ou seja, à medida que vai criticando a velha forma de representação política separada («to change [Italy], politicians have to be replaced by the citizens») propõe, no programa político que apresentou aos italianos, uma «cidadania digital» obtida à nascença e concretizada através de um acesso universalmente gratuito à rede. Por outro lado, as decisões relevantes são postas à discussão no sítio do M5S. Os temas, para além (a) da crítica às elites políticas e mediáticas, (b) da promoção de uma cidadania digital que substitua a velha representação centrada na separação entre governantes e governados e entre produtores de informação e cidadãos, (c) e da promoção da rede e dos instrumentos digitais como meios de libertação, são mais próprios dos movimentos do que dos partidos: água, ambiente sustentável, alimentos de qualidade, transportes públicos, desenvolvimento, conectividade. De resto, o M5S não é um partido. Melhor: é uma não-associação, como se autodefine.

Por um lado, não surgiu promovido pelos «media», por outro, não resultou directamente de movimentos orgânicos. O «M5S», de beppegrillo.it, é um movimento que nasceu, cresceu e se desenvolveu na rede. Sob a batuta do cómico-político, único proprietário da «marca» «MoVimento 5 Stelle». A seu tempo, já fora muito estranho que um empresário de media acabasse por chegar a Primeiro-Ministro, rompendo com uma antiga tradição de separação funcional entre gestão da economia e gestão política. A sua retórica fora a mesma de Grillo: fora com os «politicanti senza mestiere», os politiqueiros sem profissão! Uma retórica fundada na revolta ética contra a velha classe dirigente devastada pelo furacão de «tangentopoli», mas fundada também na exigência de entregar a política a pessoas que tivessem profissão fora da política. O mesmo que agora reivindica, de forma mais radical, Beppe Grillo. Berlusconi quis tirar a gestão política das mãos dos políticos «sem profissão», entregando-a a profissionais de sucesso, como ele próprio. Grillo quer entregar a política aos cidadãos, acabando com a representação. O primeiro vivia no mundo dos «media» e, a partir daí, fez o assalto ao Poder, concebendo a política como «continuação do audiovisual por outros meios». Agora, o segundo, que já vive no mundo da rede, quer acabar de vez com a representação política, transformando a democracia italiana em «democracia digital». Se o primeiro ainda via a política como assunto de elites, o segundo vê-a como assunto de cidadãos, ou melhor de internautas. Grillo fala de «cidadania digital» e de acesso universal gratuito à rede. E o seu «spin doctor», Gianroberto Casaleggio, até já publicou um vídeo com as grandes linhas da nova utopia: «Gaia – the future of politics». Não há dúvida que o caso italiano confirma o que muitos vêm dizendo há muito tempo. Ou seja, que a política não só já não pode prescindir da rede, como também já não pode prescindir da lógica que a rede induz: a lógica de um «poder diluído» (Jesús Timoteo) que é mais amigo do indivíduo singular do que das grandes organizações, políticas ou mediáticas. Pelo menos, no que diz respeito ao processo de formação do consenso. Este processo já não pode ser abordado com a lógica das grandes organizações, mas sim com a lógica da rede, que é a do indivíduo singular e interactivo. Ou seja, a rede não é um mero instrumento – igual aos outros – para chegar ao maior número possível de eleitores. Ela é muito mais. Foi por isso que a partir dela se construíram muitas utopias de democracia directa. O M5S está a tentar fazê-lo no seu interior. Só que a coisa está a revelar-se muito complexa: se é verdade que no processo de construção do consenso a rede é cada vez mais decisiva, também é verdade que a lógica de poder diluído que ela induz é altamente problemática quando se trata de gerir o poder! A experiência de Grillo será muito útil para se compreender a outra face da Rede.

Por: João de Almeida Santos

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