Desenganem-se os que pensam que as sardinhas doces de Trancoso têm escamas ou espinhas, estas iguarias possuem tripinhas de amêndoa e são uma especialidade deixada pelas irmãs do convento de Santa Clara. Há 300 anos a adoçar a boca aos habitantes de Trancoso, as “sardinhas” mais não são que um doce conventual, que muito em breve serão certificadas como uma “especialidade tradicional garantida”.
A Associação Comercial e Industrial dos Concelhos de Trancoso, Aguiar da Beira e Mêda (ACITAM) já avançou com o processo de certificação da tradicional doçaria e tenciona seguir depois para a certificação dos fumados e enchidos da região «Queremos fazer a promoção de uma marca», adianta António Oliveira, revelando que o processo «já teve início» e só resta esperar pela certificação do produto. O processo está a ser tratado por uma empresa consultora externa e espera-se que esteja tudo concluído «muito em breve», afiança o responsável. Assim, brevemente, passarão a ser conhecidas um pouco por todo o lado como sendo “Sardinha Doce de Trancoso – Especialidade Tradicional Garantida”. E as sardinhas vão aparecer no mercado inteiras, em embalagens seladas individuais ou múltiplas, de forma a conservar intactas as suas características durante o período normal de armazenamento e venda. A atribuição de um Certificado de Especificidade à Sardinha Doce de Trancoso «é um instrumento importantíssimo para evitar a descaracterização deste produto», salvaguardando a sua genuinidade e, consequentemente, a sua reputação, frisa António Oliveira. A especificidade da Sardinha Doce deve-se às características únicas deste produto, que fazem com que se distinga de outros produtos pertencentes à mesma categoria, «até pelos consumidores não habituais».
A receita deste doce conventual foi deixada pelas Irmãs do Convento de Santa Clara. Trata-se de um produto tradicional feito à base de ovos, amêndoa, chocolate, açúcar, azeite, sal e canela. O segredo desta iguaria reside na sua confecção, por isso cada um “puxa a brasa à sua sardinha”. «Nem toda a gente sabe a receita original», confidencia o marido de Maria Rosa Craveiro, uma das poucas produtoras que conhece «todos os segredos», garante. «Há para aí outras sardinhas doces, mas são filhas das originais», sublinha orgulhosamente. Também Anabela Pacheco, da Casa da Prisca, diz que o segredo está bem guardado pela sua sogra, Maria da Conceição que confecciona as iguarias para aquele estabelecimento. «Este é um produto muito procurado», afiança a responsável e «com imenso potencial», acrescenta. Para já, a Casa da Prisca, a par de tantas outras naquela cidade, já tem uma licença para produzir aquela doçaria tradicional, mas o passo mais importante vai ser dado com a certificação, «porque as sardinhas doces deixam de ser só conhecidas em Trancoso e podemos vir a comercializar para outros locais», adianta Anabela Pacheco. Quanto à produção diária é variável, pois «é consoante a procura», explica a colaboradora, há dias que não conseguem dar conta do recado e outras vezes até chega a sobrar. Depois de saborear a leveza do chocolate, a massa crocante (com um leve sabor a canela) e a maciez do recheio com a presença de pequeninos pedaços de amêndoa, é caso para dizer: «bendita freira que as criou!».
Estórias doces
Reza a tradição oral desta vila de Trancoso que o doce “Sardinhas Doces” é uma receita conventual proveniente do Convento de Santa Clara desta vila histórica.
O Convento de Freiras da Ordem de Santa Clara ficou a dever-se a Cristóvão Mendes de Carvalho, fidalgo da casa de D. João III e desembargador do Paço e a sua mulher que, tal como o marido, era muito devota de Nossa Senhora do Sepulcro, hoje como se sabe, Nossa Senhora da Fresta. Foi sua primeira intenção fundarem o convento na respectiva igreja tendo, para isso, em 1537, chegado a obter licença do então Núncio Apostólico em Lisboa. A ideia da fundação do convento junto à igreja de Nossa Senhora do Sepulcro foi posta de parte porque o local não tinha capacidade para um Mosteiro, tendo-se resolvido que o convento pertencesse à Ordem de Santa Clara. Supõe-se que foi o Infante D. Luís, herdeiro da Condessa de Marialva, D. Brites, quem graciosamente cedeu os paços onde veio a instalar-se e de que no tempo apenas existia a Torre. Localizava-se na actual praça de D. Dinis bem no meio do Centro Histórico desta Vila de Trancoso. Por alvará de Filipe II de 1582 foi autorizada a compra de seis moradias confinantes para ampliação das instalações do convento. Em 1618 tornou o convento a ser ampliado. Em 1540 deram entrada as primeiras freiras provenientes do convento de Santa Clara do Porto. Já, em1706 residiam no convento noventa religiosas e se a este número somarmos criadas e recolhidas ali residia uma comunidade muito superior às cem pessoas. As últimas freiras saíram do convento em 1864.
Com a extinção do convento a receita das sardinhas doces manteve-se na tradição local, primeiramente nas casas fidalgas e/ou abastadas da vila e mais tarde popularizou-se entre os habitantes locais, com o aparecimento de diversas doceiras. Muito contribuíram para a popularização do seu fabrico e consumo, já nos meados do século vinte, algumas doceiras de Trancoso, como Maria Luísa Bogalho que com a sua irmã, Maria Antónia Bogalho fundaria em 1947 a pensão das “Bogalhas” situada na Rua Chãs, em Trancoso. E ainda, Maria do Céu, popularmente conhecida por “Céu do Doro”, famosa doceira de Trancoso que, ao longo de várias décadas, dos anos quarenta aos anos setenta encantou os seus clientes com deliciosas doçarias.
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