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Divinas Comédias

Paraíso – José Cardoso Pires

Abençoado Nelson de Matos. No décimo aniversário da morte de José Cardoso Pires, há inédito na costa. Inédito, vírgula: consta que, em 1963, uma versão de Lavagante – Encontro Desabitado (Edições Nelson de Matos, 89 págs.) apareceu na revista “O Tempo e o Modo” como capítulo preparatório de romance que nunca existiu. Que pena: escrito antes de O Delfim (um dos maiores romances de toda a literatura portuguesa), este conto longo (ou novela breve) é Cardoso Pires “vintage”. Basta ler a primeira frase (“Bebemos mais um copo: o oitavo ou o décimo, não sei bem”) para reconhecer a sensualidade única da escrita de Cardoso Pires: uma espécie de “sprezzatura” narcótica que, como diria Castiglione no Livro do Cortesão, se define por um máximo de esforço destinado a ocultar qualquer esforço. E depois vem o resto: uma capacidade para desenhar personagens (“desenhar” é o verbo) que devia enlouquecer de inveja qualquer escritor português em actividade.

O livro é uma história de amor, tão simples e tão desolada que até dói: Daniel, médico com actividade oposicionista ao regime de Salazar, conhece Cecília, estudante com particular gosto por jazz e Henry Miller. Daniel acredita que, como na história do Pigmalião, ele será capaz de a moldar a si próprio e às causas que defende. Mas é Cecília quem devora Daniel no final, como o lavagante devora o safio que alimenta no fundo das águas, com metódica perversidade. Uma história de traição? Não exactamente. Talvez a história de como a traição entre amantes se confunde, tantas vezes, com actos de sacrifício e salvação. Sobretudo no tempo silencioso e estagnado da ditadura pátria: um tempo em que a Primavera cobria os céus de Lisboa – mas a multidão, alheia à luz e à maresia do Tejo, circulava cá por baixo, muda e temerosa, como se fosse “uma irmandade de pequenos fragmentos de Inverno”. Seja em romances ou em pequenas novelas, de que Lavagante é um caso, ninguém escreveu esse Inverno como Cardoso Pires.

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