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Dias de raiva

Atmosfera Portátil

Quem vive na cidade da Guarda e gosta de cá viver, tem por hábito referir a qualidade de vida da cidade, apresentando diversos argumentos. Um dos quais passa pela qualidade do ar, o baixo índice de criminalidade ou o trânsito urbano desafogado (comparativamente com o das grandes cidades). Mas a verdade é que até nas cidades pequenas do interior se assiste, cada vez mais, a situações de tensão, de cansaço e de conflito entre automobilistas. Ainda há dias assisti a uma cena no centro da cidade em que um condutor verteu buzinadelas para um outro enquanto abria o vidro e lançava vitupérios para quem o quisesse ouvir. Não sei bem o que aconteceu, nem isso interessa muito. Mas fiquei a pensar o que terá passado na cabeça daquele automobilista enraivecido, provável cidadão pacato e pai de família, para reagir daquela forma, naquele momento específico. Na verdade, há dias em que basta um pormenor insignificante para despoletar um acesso de descarga emocional.

Afinal, qual é o mal da nossa sociedade? O que é que a corrompe por dentro? O que leva um cidadão comum, com uma vida comum e um emprego comum, a rebelar-se contra tudo à sua volta, no espaço real de poucas horas? A podridão, a corrupção, o consumismo, a publicidade enganosa, o ódio, a estupidez dos outros, o calor excessivo, o desemprego, o tédio, a comida de plástico, a violência veiculada pela TV, os pequenos nadas que, acumulados, fazem enlouquecer esse homem comum? É o que acontece a William “D-Fens” Foster no filme “Um Dia de Raiva” (“Falling Down”, 1993) do realizador Joel Schumacher. O dia do cidadão William Foster (fabuloso Michael Douglas) começa como qualquer outro: de manhã, parado no engarrafamento de trânsito, Mas há um pequeno detalhe que vai desencadear uma trepidante viagem ao abismo dele próprio e da sociedade que o gerou. É a queda de um indivíduo comum que passa, repentinamente, de insípido cidadão a protagonista de um dia na cidade. Um dia. De raiva. De violência em resposta a injustiças sociais e desenganos quotidianos.

Este homem, enraivecido por um conjunto de acontecimentos que fugiram ao seu controlo, parte à procura de um sentido para a sua existência e para o sentido do funcionamento estrutural da própria cidade. Afinal, William “D-Fens” Foster (repare-se no trocadilho do meio: “Defense”) só queria chegar a tempo a casa para o aniversário da filha. Mas a grande cidade, oh a grande cidade que tudo engole e não quer saber do indivíduo para nada, colocou-lhe milhentos entraves ao longo do seu percurso. O primeiro dos quais, logo ao raiar do dia, numa fila de carros interminável. Uma fila de carros igual a todas as outras dos anteriores dias. Mas nesse dia em particular, a paciência deste homem rebentou. Esse homem comum, igual a todos nós, com camisa e gravata, trabalhador cumpridor, canetas no bolso e pasta preta, começa nesse momento a perder o controlo perante a pressão eminente. Abandona o carro no meio da auto-estrada e liberta-se, vai explodindo aos poucos, partindo à descoberta do lado negro da cidade. E com esta atitude, conhece também o seu próprio lado negro. “Um Dia de Raiva” é um filme que é um autêntico manifesto sociológico sobre os tempos modernos e devia ser estudado em aulas de psicologia e sociologia.

Todas as manhãs, ao ligar a televisão e ver as hercúleas filas de trânsito de acesso a Lisboa e ao Porto, lembro-me deste filme. E imagino o desespero estampado no rosto de cada um desses automobilistas, à espera de prosseguir a marcha por mais uns metros, para depois parar de novo e esperar, esperar, esperar, até chegar ao emprego ou à escola, já exaustos. E espanto-me perante esta dúvida: não há, afinal, naqueles condutores do dia-a-dia de uma qualquer cidade, um perigoso “William “D-Fens” Foster em potência?

Por: Victor Afonso

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