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Deus em Roma

Tresler

1.A poucas semanas da Páscoa e com os cardeais às voltas para decidir qual será o melhor para pastorear a Igreja, a resignação de Bento XVI veio ao menos introduzir um pouco de racionalidade na liderança católica. Como aguentar um papa que não quer estar lá? Como manter um papa (como João Paulo II) que nos últimos tempos de vida já não conseguia mexer-se nem pensar? A incapacidade da Igreja para intervir nestes casos teve em Bento XVI uma resposta inteligente: ele antecipou-se ao problema. Por detrás das reações globalmente laudatórias ao gesto, adivinho muita dúvida semântica relativa à palavra “infalibilidade”. É como que uma confissão de fraqueza que um papa não poderia ter dado. E (talvez hipocritamente) aquilo que não se criticou em João Paulo II louva-se agora em Bento XVI. Entretanto a linguagem eclesial fechada voltou logo a seguir, com a confiança renovada de que na eleição do novo papa seja o “Espírito Santo” a guiar a eleição em curso. E se o novo papa eleito no momento de aceitar tivesse também ele um momento de fraqueza e declinasse a votação, abdicando logo a seguir? Já aconteceu em filme (“Habemus Papam”, de Nanni Moretti) e seria outro momento de flagrante humanidade, que ninguém desejará à Igreja Católica neste momento. Que haja Deus!

2.Uma coisa que nos enerva e ao mesmo tempo nos desilude nos jovens de hoje é o quase completo desconhecimento da tradição judaico-cristã: a Bíblia, a vida de Cristo e as suas “palavras”, a sequência da presença eclesial durante vinte séculos. Porque muitas vezes esse conhecimento é importante no ensino em matérias ligadas às obras literárias, à Filosofia, à História. Como passar a mensagem da extraordinária figura de Matilde em “Felizmente Há Luar” sem o conhecimento da “Paixão de Cristo”, da sua oposição aos “fariseus”, das “bem-aventuranças” no Sermão da Montanha, tudo referências fundamentais do discurso final daquela personagem na obra? E no estudo do “Memorial do Convento” como explicar a proliferação de ordens mendicantes em Portugal, o país da fradaria? Ou como fazer entender aos jovens o significado do “milagre” na retórica eclesiástica? Que alguma coisa não funciona e não passa, isso parece claro. Poucos alunos vão à catequese, muito menos às aulas de Educação Moral e Religiosa, a aula de História não é suficiente, o preconceito laico faz outro tanto. E assim se perde um conjunto de saberes que ajudariam a integrar outros saberes. Há saída? Dificilmente.

Se os jovens não entendem as referências bíblicas, poderão ao menos entender a ideia protetora e punitiva de Deus tal como ela passa na religião ou outras maneiras de ver Deus, menos oficiais. E uma coisa é a construção de um Deus funcional pela retórica eclesiástica ou pelos homens do poder, outra a ideia de Deus como Supremo Bem a que todos podemos aspirar, fazendo… o bem. Realidade que os homens não têm mesmo capacidade de alcançar. Frei Diogo, em “Felizmente Há Luar”, pede à mulher do general que vai arder na fogueira da intolerância que “não julgue a Deus pelos homens que falam em seu nome” e que “não O julgue sem O ouvir” já que “Deus carece cada vez mais desse direito”. Esta perspetiva abre a possibilidade de o próprio homem confrontar Deus a propósito daqueles que falam em seu nome: “Por quem és tu, Senhor, por Ti ou contra Ti?”, interroga Matilde. É como se houvesse dois deuses, o das ideias generosas e o das bombas suicidas.

3.No centro de tudo a figura de Jesus Cristo e a da Igreja que porventura ele nunca quis criar com a configuração que lhe conhecemos hoje. A poucos dias da Semana Santa continuamos a interrogar-nos sobre o que acelerou o destino daquele judeu que tinha passado dois ou três anos pelas terras da Galileia a anunciar o Reino de Deus como “um profeta à maneira de Elias”, “realizador de milagres”, “mestre de sabedoria” e “líder de grupos” (nas expressões de J. P. Meier, citado na obra “Quem foi, quem é Jesus Cristo?”). De repente este homem sobe a Jerusalém por alturas da Páscoa e, numa fuga para a frente, apresenta-se como “Filho de David”, que vem instaurar o Reino. O que é que levou Jesus a rumar a Jerusalém, a provocar os Sumos Sacerdotes e o poder de Pilatos, quase num gesto suicida, sabendo que não convenceria a população e que a sua mensagem era ininteligível? Talvez a sua convicção de que só a morte ajudaria à instauração desse Reino, de ordem eminentemente espiritual. Logicamente poderia pensar-se que a morte corresponderia a uma derrota deste projeto messiânico, mas ela foi afinal a base da sua propagada ressurreição, o ponto de partida do nascimento da Igreja.

(A obra “Quem foi, quem é Jesus Cristo?”, coordenada por Anselmo Borges, é o repositório do Colóquio Internacional com o mesmo nome, realizado em outubro de 2011 e cheio de comunicações verdadeiramente interessantes ressuscitando a atualidade do “Filho do Homem”; “Felizmente Há Luar”, de Sttau Monteiro, de 1961, é um grito de liberdade que nunca passa de moda.)

Por: Joaquim Igreja

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