1. Os livros são países, confidencia o leitor errante. Descobertos, não conquistados; percorrendo atalhos, não vias cartografadas; por vagamundos, não por plenimundos. Escrever é uma anabase, uma viagem em direcção ao interior de um país que nasce no risco do esquecimento. Ler é seguir o rasto de quem escreve – mas quem lê, inevitavelmente, perde-se, transvia-se, desvia-se da linha traçada, treslê, despista-se nas curvas da letra, escreve outro percurso, lê outro país. Continua o leitor errante: conheci um explorador genuíno (mas nada conquistou e nada tinha que fosse seu); sobre a leitura disse: Os livros são chatos de ler. Não há neles livre circulação. Somos convidados a seguir. O caminho está traçado, único. Muito diferente é o quadro, total. À esquerda, também à direita, em profundidade, sem peias. Nele não há trajecto, há mil trajectos, e as pausas não são indicadas. Mal a gente o deseje, de novo o quadro todo, por inteiro. Num instante está ali tudo. Tudo, mas nada ainda é conhecido. É aqui que se deve começar a ler. O livro é, não obstante as limitações da memória, como um quadro: no momento em que se acaba a leitura, tem paisagens, vales, dobras sombrias, cor, corografia. Dos seus picos (cobertos com a neve dos sublinhados) os pobres espremem citações, os sábios erigem torres académicas e os vagabundos visionam panoramas de intensidade, medo e fascínio. Há também um ambiente, nos livros, uma luz do lugar, um sopro, às vezes um odor, único, que atravessa o país desvelado pela primeira leitura. No fim do livro é que começo a ler. Na revisita é que apreendo esse espírito que une leitor e escritor na mesma aflição, a aflição que impele à escrita e à leitura, conclui o leitor errante.
2. As tripas do livro, cá fora. As navalhas do olhar estiveram lá dentro, a vasculhar. Sangue e excrementos, escorrendo. Antes, o corpo na sombra. O corpo de leitura. O corpo umbral. Agora, o corpo friável. O corpo abaixo da superfície, revolvido. O corpo de superfície revolvida. O corpo atravessado pela insensibilidade da lâmina, sentido noutro corpo. Esse, o corpo da leitura.
Aquele ali, o corpo corpo, ou este aqui, o corpo que lê, são o corpo opaco. Manchas no sol. Corpos ilegíveis. Solitários. E, contudo, o livro é um espaço sacrificial. Aí se rasgam os corpos, aí comungam, aí se comem uns aos outros, permutando memórias, mortes e vitalidade. Aí se suturam os corpos com partes de outros corpos.
3. Parto. Adentro-me em território estranho, a escrita do outro. Meu desígnio é perder-me, ser assaltado, despojado da língua, a materna. Não abdico de um pouco de broa da memória, mas preferirei colher as amoras que os atalhos da leitura me oferecerem. Seguirei o rasto dos seres rebeldes e ariscos, que se escondem furtivamente à passagem das caravanas oficiais. Procurarei abrigar-me à sombra da vida clandestina do texto. Espero a metamorfose do convívio com os salteadores, os raros e os mendigos . Minha glória será não me reconhecerem à chegada. Assim meditou. Depois, debruçou-se sobre o livro, e leu.
4. Todo o poeta é estrangeiro. Porque nos desloca e altera. Porque nos dá uma nova casa em nossa casa, um novo horizonte ao horizonte (julgávamos nós) por demais conhecido. Porque o poeta mora na demora, mesmo quando utiliza a mesma língua que nós. O seu idioma, porém, é outro, sempre. Porque se demora na língua, nos impossíveis da língua. E no espaço que ela percorre, rio, montanha, cidade, mar. O seu dom é a atenção obsessiva. Onde deixámos de ver, ele vê ainda.
5. A poesia, como a música, não é inocente. Também a poesia cantou feitos militares e a morte. Alguma considerada da melhor. Ao som da música marcharam soldados; Wagner e Beethoven foram banda sonora da infâmia nazi. E contudo… O ritmo de um verso desconcerta o ritmo do poder: para tanto, só é preciso que bata no tempo fraco deste com o seu tempo forte. O poder acaba por vencer o poeta, mas não o efeito do poema.
Por: António Godinho