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«Desta vez, o Natal veio mais cedo»

Cara a Cara – Entrevista

P – Como surgiu a Casa da Sagrada Família na Guarda?

R – Nós, as Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, viemos em 1936, mas a obra já existia há uns 70 anos, desde 1868. O objectivo era acolher as crianças carenciadas, abandonadas e órfãs. Hoje, a carência económica não é o único motivo. As crianças que temos aqui têm famílias com carências económicas, mas têm outras problemáticas, como a orfandade, o abandono, a negligência, maus-tratos, abusos e tentativas de abusos sexuais, problemas graves de saúde dos pais ou a toxicodependência. O nosso carisma, a nossa missão, sempre foi estar com crianças desprotegidas.

P – Como é que as crianças se adaptam, no momento da entrada na Obra?

R – Elas vivem em situações tais que ao chegarem adaptam-se muito bem. Com excepção de algumas que entram mais tarde e vê-se um esforço notório, ficamos admiradas com crianças que parecem estar aqui há muitos dias quando acabaram de chegar. O carinho, o conforto… sentem-se muito bem entre nós. Há fases, como a adolescência, em que aspiram a mais liberdade, mas estão numa casa, num grupo grande, e tem de haver limites e regras, que elas também precisam. Às vezes são crianças que viviam na rua e os pais não lhes impunham esses limites. Mas, pensando no futuro, elas reconhecem que a Casa consegue dar-lhes o que a família não conseguiria e esforçam-se para se adaptarem. Nós acompanhamo-las nos estudos e na saúde e elas vêem que nos preocupamos com elas. Mas claro que não há nada que substitua um pai ou uma mãe.

P – Nestas crianças nota-se mais um sentimento de tristeza ou de revolta?

R – Tristes não vejo tantas, mas revoltas sim. Com algumas, mesmo no semblante, nota-se que estão ausentes, mas isso acontece com todos nós. Mas conhecemos a trajectória e fazemos associações. Há duas irmãs que estão aqui há quatro anos. Vieram pequeninas, mas com a expectativa que ficariam aqui um tempo e depois regressariam a casa. Andaram nisto um ano, falei com os técnicos, pois os pais diziam-lhes que passariam cá para as levar. Mesmo elas filtravam a informação daquilo que era a situação familiar – um problema grave de alcoolismo dos pais – e acabavam por sofrer. Ambas as situações acontecem, mas com o dia-a-dia supera-se, vemo-las felizes, com capacidade de iniciativa e bastante activas.

P – Mas também há mais maturidade, por terem de crescer mais depressa ou com mais problemas?

R – No geral, sim. São confrontadas com colegas que têm pai e mãe, que comentam onde vivem. Elas sentem que são diferentes, e nós também. Em certas atitudes vemos que são mais maduras, pois o sofrimento da vida faz amadurecer e isso nota-se. Às vezes temos de ir a tribunal com elas para rever a medida de institucionalização… Temos uma menina de 16 anos, que já é muito madura e está a preparar a sua vida. Com a mãe, por exemplo, é ela que controla e impõe limites nos horários das visitas. Ela leva isso a peito, respeita e assume esse papel. Até pelos telefonemas se vê que lidera relativamente à mãe e ao irmão, que também está institucionalizado.

P – Como receberam a notícia de que tinham sido contempladas com o donativo da gala do NERGA?

R – Foi com muita alegria. Foi algo inesperado e ficámos surpreendidas por nos ter calhado a sorte de beneficiar desse apoio. Vivo tanto aqui que não estou a par das notícias locais ou de outros assuntos. Tanto assim que nem tinha conhecimento dessa hipótese antes do sorteio. Quanto às meninas, só lhes disse quando vieram fazer as filmagens, para não ficarem muito agitadas.

P – Onde vão aplicar os 10 mil euros?

R – Há algumas coisas que estão pendentes. A primeira vai ser a sala de estar delas, que precisa de equipamento substituído – sofás, móvel, carpete – e vamos remodelar o espaço, para o deixarmos mais colorido. Isso é uma urgência e já tinha candidatado a Casa a alguns projectos. Às vezes, pelo Natal, temos umas surpresas, mas desta vez o Natal veio mais cedo. Depois, temos o projecto de segurança e há o aquecimento da Casa. O donativo do NERGA também vai ajudar numa iniciativa que se destina à desinstitucionalização das crianças e à sua preparação para a autonomia de vida. Importa educar e torná-las responsáveis, activas e livres, para que depois, quando não podem regressar às famílias, saibam adaptar-se. Estamos a tentar adquirir um apartamento para que algumas das mais velhas ali possam desenvolver essa autonomia de vida: ter contacto com as contas, cozinhar e gerir a casa.

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