O diferendo que opõe taxistas e plataformas digitais de transportes, em particular a Uber e a Cabify, é um exemplo tão típico daquilo que são as dinâmicas dos movimentos de opinião e seus atropelos que podia ir diretamente para os manuais. O diferendo é complexo e ninguém sai dele livre de culpas. Governo, taxistas, plataformas. E também nós cidadãos comuns. Todos têm algumas razões de queixa e todos perdem alguma razão na queixa.
Primeiro, os taxistas. A sua atividade é altamente regulamentada e, contudo, o Governo dispôs-se a autorizar, com muito menos regulamentação, a atividade de um competidor direto. Há uma clara distorção concorrencial que não pode ser apagada pelo facto de os taxistas conservarem certas vantagens, como benefícios fiscais ou o direito a praça. O Governo deveria ter procedido a uma regulamentação única que produzisse obrigações idênticas – quer na prestação de serviço, que na formação exigida, quer na prestação de contas – de todos os transportadores automóveis de passageiros.
Para garantir igualdade concorrencial certamente, mas não só. E é aqui que os cidadãos em geral deveriam ter mais razões de queixa. A liberalização que deixa simplesmente dependente da lei da oferta e da procura o apuramento do preço de uma viagem, sem que haja uma tabela, pode produzir efeitos chocantes. Por exemplo, a prática de preços demasiados baixos para secar a concorrência. Ou a prática de preços demasiado altos quando a procura sobe. Na cidade de Nova Iorque, em 2012, a Uber foi fortemente criticada porque os preços galoparam durante o furacão Sandy. O que nós cidadãos temos obrigação de tentar perceber – para lá do ponto de vista de meros utentes – é se não se está assim a dar cobertura a uma atividade laboral completamente desregulamentada. Não por acaso, de forma completamente ingénua e empenhada, o “colaborador” de uma plataforma relatava há dias, em entrevista a um diário nacional, que pegava no trabalho às 6 da manhã e só terminava às 22 horas. Não devemos temer pela segurança dos passageiros e do próprio condutor numa jornada de 16 horas de trabalho?
Claro que não faltam razões de queixa contra o grupo profissional dos taxistas. Como é que 13 mil pessoas dotadas de organizações representativas se deixam ainda assim representar tão mal no espaço público? E que procedimentos põe este grupo profissional em curso para penalizar ou mesmo excluir aqueles que infringem as regras de conduta que estão previstas na concessão de “certificação de motorista de táxi”?
E sim, restam as razões de queixa de nós próprios, que demasiado facilmente cedemos à tendência de fazer generalizações apressadas, reforçando estereótipos, imergindo na corrente de opiniões e vontades que as redes sociais tão depressa engrossam. Nem nos apercebemos de que assim nos zangamos com um outro que na maioria das vezes apenas está a levar por tabela. Boas razões para preferirmos julgar apenas depois da leitura mediada de um jornal feito por jornalistas.
Pensar que as plataformas digitais de transportes devam ser interditadas não faz sentido. Não deixariam de operar na sombra. Mas menos sentido faz que se deite fora o património de direitos e deveres na prestação de serviços e nas relações de trabalho só porque a tecnologia permite uma brecha. O resto é ruído, demasiado ruído.
Por: André Barata