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De Seca a Meca

(…) Há semanas atrás, fui à Guarda participar num evento cultural. Ido de Leiria, que inaugurou um estádio de milhões e quer ser centro metropolitano, pensava nada ir aprender… Apenas encontrar a desolação da interioridade, levada ao extremo.

Qual não foi o meu espanto quando, num centro histórico reabilitado, verifiquei que o município dotara a urbe de auditórios, museu e salas de apoio, onde um vasto programa cultural está a ser desenvolvido por diversos grupos, na aparência, sem discriminações. A cidade tem duas revistas de cultura e a respectiva Câmara patrocina uma, de grande qualidade, abarcando desde as artes à arqueologia e à história de toda a região, desde a culinária e o artesanato ao turismo e ao património, etc… A “esbanjar” assim “luxos”, qualquer dia o dinheiro não vai chegar para “prioridades” tão flagrantes como o tão necessário Boletim Municipal!…

Mas não sou só eu e o Presidente Bush que vivemos afastados de realidades que devíamos conhecer. Diariamente, dou com portugueses que estão tão confinados dentro deles, que até do seu próprio mundo se perdem. Querem exemplos? Como é possível que o país tenha deixado cair no esquecimento quase um milhão de portugueses, que vegetam nesses campos de concentração sem licença a que, cinicamente, chamamos Lares de Idosos? Como é possível que, desde Pina Manique, se tenha dificultado a adopção de crianças e fechado os olhos ao horror da pedofilia? E, agora que essas crianças estão mais protegidas, porque estamos muito mais interessados na telenovela Casa Pia do que em julgar, no respeito da lei, os acusados dos crimes?…

Em qualquer lado nos podemos evadir e aprender mais, quando deixo de entender as coisas e Portugal se torna numa grande “seca, costumo ir dar uma volta. Há dias, ignorando conselhos, voltei-me para os lados de Meca, terras que a generalidade dos portugueses desconhece e, por isso, teme visitar. Ter encontrado países em grande expansão, e onde se vive em total segurança, só pode admirar a quem desconhece o que vai pelo mundo. Há muito que o Próximo Oriente é um dos motores da economia mundial, crescendo entre 5 a 10 por cento ao ano. Vive-se em toda a região um bom momento e, se por vezes ainda encontramos gente pobre, não se vê um único pedinte… nem sequer arrumadores de automóveis.

O Egipto e a Síria são roteiros acolhedores e, como berços da Humanidade, merecem amplamente uma visita. A tão temida Beirute está airosa e segura e, nas ruas, quase não se notam os estigmas da guerra civil. No sultanato de Oman, onde há 30 anos era proibido fumar nas ruas, respira-se progresso. A sua capital, rica e asseada, tem uma mesquita nova que merecia uma visita do Bispo de Leiria, antes de projectar a basílica de Fátima. Os Emirados são um dos países mais espectaculares do mundo e, em pouco tempo, tornaram-se referência para todos os amantes da arquitectura moderna. As suas estradas têm três a cinco faixas para cada lado e estão pejadas de belos jardins e de radares. Nada preocupa aquele povo, salvo a criminalidade nos jovens: vejam lá, quase 2.800 crimes em 2003, em todo o país!… Porém, quando se analisam estes números, descobre-se que abundam os “crimes” de trânsito, de emigração e até sexuais (dar um beijo pode ser crime e o adultério é punido com vinte chibatadas e dois anos de prisão), quase não havendo roubos ou violência. Ao ver tanto palácio, perguntei para que queriam casas tão grandes e obtive uma resposta que me fez pensar: «Aqui, não temos o hábito de ter cães e gatos dentro das nossas casas, preferimos ter filhos e cuidar dos nossos pais e avós».

O século XX foi vertiginoso e tornou estes novos dois mundos – o cristão e o muçulmano… – quase irreconhecíveis. E, nada de anormal, tendo nós nascido deste lado, arreigámo-nos à nossa civilização. Mas é preferível olhar para uns e outros com olhos de ver, do que temer o que se não conhece. Só mesmo G.W. Bush não percebe que – tal como Seca e Meca… –, estamos condenados a viver lado a lado.

Cândido Ferreira, médico e escritor, Leiria

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