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De gatos a “meninos”

A porta de casa de minha avó era de madeira, como todas as portas de casa de todas as avós, coberta de tinta grená, esfolada pelo sol de muitos dias, com um buraco redondo no canto inferior esquerdo. De tanto ver os gatos entrar e sair por aquele buraco, cheguei a acreditar que tinham sido eles próprios a fazê-lo. Talvez nalgum dia em que lhes fecharam a porta e não lhes tenha agradado a ideia de dormir ao relento. Não estivera eu habituada a vê-los dormir no estrado da braseira, por baixo da camilha, ou no parapeito da janela, que tal ideia nunca me teria ocorrido. Mas como estava, foi a melhor explicação que encontrei.

Se fosse hoje, mesmo que as portas continuassem a ser de madeira, com um buraco redondo no canto inferior esquerdo, nunca me lembraria de atribuir a obra às unhas dos gatos. Pela simples razão de que já não há gatos! Já não há gatos para o Eugénio de Andrade escrever que são dos quintais, dos portões, dos quarteis e das pensões, das duquesas, das meninas e das ruínas. Já não há gatos a entrar e sair por buracos redondos esculpidos nas portas de madeira meio cobertas com tinta grená. Agora há “meninos” e “meninas”, com nome de gente e estatuto de diva, aprisionados no limbo das redes sociais.

Perseguidos, capturados, por uma legião de fervorosos crentes do novo paradigma da gataria, os pobres dos gatos já nem para acasalar são livres. Castram-nos à nascença, ou mal os apanhem a jeito, enfiam-lhes uma coleira, à laia de cartão de cidadão felino, e toca de se lhes acabar com qualquer laivo de independência. Se a algum, mais insubmisso, lembrar ir dar uma volta pelas ruas do bairro, leva logo com uma resma de cliques fotográficos de alertas e urgências de recapturas. Bem se pode esperar, de imediato, um rol infindável de apelos e lamentos, mais ou menos chorosos, mais ou menos aflitos, difundidos à exaustão, de todos os modos e feitios.

Nessas alturas, recordando a minha avó, o buraco da porta por onde entravam e saíam os gatos lá de casa, penso ouvi-la exclamar “está tudo parvo!” No seu pragmatismo, nos seus modos sempre escorreitos de decifrar as coisas mais comezinhas da vida, haveria de perguntar “mas afinal, se não é para caçar ratos, quer o gato para quê? Não me diga que é para lhe afagar a alma… Olhe, arranje mas é que fazer.” Para o bem e para o mal, não saí completamente a ela, por isso, não irei tão longe, mas lá que me questiono onde é que agora será o céu – e o inferno – dos pardais, questiono. Confesso que me inquieta, à séria, a velocidade de cruzeiro com que os novos “meninos” e “meninas”, castrados, esterilizados, mimados, estão a exterminar uma das espécies que mais jeito nos dava na luta contra a rataria: os gatos.

Esses belos espécimes que, segundo o poeta, vinham do lado da noite, do oiro e rosa do dia, estão a ser substituídos por seres, obesos e amorfos, que nos chegam dos sofás. Fazendo com que não nos baste chegar à janela, ao quintal, ou à porta da rua, para ficar fartos de gatos. Hoje em dia, para ficar fartos de gatos, temos de ligar-nos à internet e espreitar nas redes sociais os “meninos” e “meninas” de alguém que, aqui e ali, vai revelando a verdadeira essência da coisa “meu herói coitadinho, sem mim tinha morrido abandonado na rua…” Já farta, mesmo.

Por: Fidélia Pissarra

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