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Da liberdade de perguntar

Theatrum mundi

I

Não há melhor destino para o homem que o de desempenhar cabalmente o seu ofício de homem // Montaigne (Essais III, XIII: De l’expérience, 1603). Num momento em que a educação voltou ao primeiro plano das preocupações sociais, e em que professores e alunos fazem manchete nos media, penso que haveria que fazer um exercício colectivo sobre a escola nos seus diferentes graus, sobre a sua coerência como instituição social e sobre as competências que lega ou deveria ser capaz de legar a quem aprende. As preocupações com a educação são recorrentes, mas as ansiedades da época tecnocrática em que vivemos acabam monopolizadas pela ética instrumental da apropriação do saber e da sua redução a mero interesse cognitivo técnico, próprio das ciências empíricas, de acordo com o diagnóstico feito por Jürgen Habermas. Assim, não é de espantar que, na mente dos decisores, a ideia de Universidade comece a reduzir-se a mero instrumento de um difuso avanço tecnológico, ao arrepio da tradição universalista que a viu nascer. Em tempo de reorganização da Universidade portuguesa, o espírito do momento parece querer tornar absoluto o controlo técnico sobre o mundo e sobre a vida, e torná-lo medida única do sucesso do ensino e da relevância académica. Frente a instintos totalizantes, a Universidade sem condição de Jacques Derrida – a liberdade incondicional de propor e questionar. Em contraste com o controlo técnico, a hermenêutica da suspeita e o seu interesse cognitivo prático-emancipatório, que permitem pôr a descoberto o mundo das relações sociais injustas e avançar consensos sociais mais inclusivos.

A Universidade – as humanidades e as artes, antes do mais – será cultura dialógica e exercício hermenêutico ou não será Universidade; mas esta cultura, este ofício, têm de ser preparados desde muito antes, na escola e em casa. Numa época em que é posta em causa a capacidade da escola para cumprir as suas missões, vale a pena realçar que a primeira delas é contribuir para a autonomia intelectual de quem aprende, estimulando o espírito crítico, o empenhamento cívico e uma visão abrangente do mundo. Este artigo é escrito em parceria, como exercício dialógico, resultado da exploração aberta de ideias entre professor e aluno, e onde a única regra é a de aderir, continuar ou discordar em plena liberdade. E é pedaço de um caminho, do aluno e do professor, partilhado agora, contra a esterilização do pensamento totalizante, retalho do ofício de homem que àquele opõe a diversidade, a criatividade e a autenticidade. Como afirmou um dia Alejo Carpentier a propósito deste ofício, en eso estoy y en eso seguiré (Visión de América, 1999).

II

A inevitável pequenez espaciotemporal da vida de cada um de nós faz com que, por vezes, nos esqueçamos de que frequentemente aquilo que na nossa vida é a regra historicamente é a excepção, aquilo que consideramos banal é na realidade um privilégio, aquilo que encaramos como certeza sem valor é, na verdade, uma conquista dos nossos antepassados. Recebi recentemente uma carta do Ministério da Defesa Nacional na qual me comunicam a obrigatoriedade de participar no seu dia de divulgação, informação e motivação. Sei do que se tratará – várias horas seguidas a visitar instalações, receber motivação para me alistar, conhecer profissionais da área e talvez fazer alguns exercícios. Os meus queixumes aborrecidos mas resignados por ter de participar – não me sinto atraído pela via militar – rapidamente desapareceram; imaginei o que seria receber semelhante carta no tempo da guerra colonial. O dia que agora se perde era antes uma vida. O aborrecimento leviano que me percorre é incomparável à angústia que certamente terá invadido o espírito de um jovem enviado, pela mão de ferro ditatorial, a combater uma guerra suja e anacrónica.

A absolutização de uma verdade impalpável transforma-se frequentemente na mais frontal das violências. É a flexibilidade do diálogo que conduz à força da paz, sem a qual não há progresso. Não um progresso de quantos megabytes podemos ter no nosso telemóvel, mas sim aquele em que a cultura se sobrepõe à agressividade e a voz do diálogo derrota o som das metralhadoras.

A crispação causada pelo endeusamento monopolista de uma subjectividade não se faz sentir apenas no aparelho de estado. O absolutismo governamental e o orgulhosamente sós de um país têm paralelo no absolutismo intelectual e na esterilização do pensamento de uma academia. As espingardas de uns são as jogadas mesquinhas de outros. E se os primeiros, com a vitória e a consolidação da democracia portuguesa, já estão longe, os segundos ainda perduram, embora cada vez mais dissonantes. Urge que intelectuais se aproximem e, mesmo com perspectivas diferentes ou até opostas, produzam conhecimento sob o mesmo panorama unificador – o de elevar o mundo científico português. Frente aos feudos intelectuais, há que opor a autenticidade do pensamento, e frente às respostas com tentação totalitária, a maravilhosa liberdade de perguntar.

Por: Marcos Farias Ferreira *

* Com David Erlich

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