Arquivo

Da Cultura

Começo por pedir, ao estimado leitor, autorização para aduzir um repetido e consabido lugar-comum: a importância da Cultura avantaja-se cada vez mais nas comunidades e sociedades. E até um periférico país como Portugal tem, desde há anos, um Ministério da Cultura.

A imagem de que a cultura humana é um paralelo com a cultura do solo, a qual dá os mais tocantes ou emocionantes resultados se houver atenção, carinho e irrenunciável persistência, tem toda a razão de ser – e é perene. Passemos, exclusivamente, à primeira.

Tudo indica que a apetência pela Cultura é, à partida, um dom inato, tal como, v.g., o ser-se inclinado para a Arte, para a Filosofia, para a Psicologia,…, dom inato que contém em si, ou ao qual se agrega, a curiosidade.

A este dom inato é inerente a potência, é, portanto, uma potência interior, potência que tem o insaciável como um intrínseco elemento da dita curiosidade.

Querer saber equivale a ler ou, actualmente, ser internauta. Sou levado a pensar que a primeira é claramente superior. Uma página pode sublinhar-se, anotar-se, cotejar-se, ficar aberta todo o tempo que queiramos – em silêncio absoluto -, ser pasto de incontável imaginação, reflexão, meditação… Esclareço, todavia, que a minha experiência como internauta é nula.

Da potência do citado dom inato e curioso deriva a informação; e uma refinadíssima memória para a reter é condição sine qua non. Da crescente informação emana a formação. Mas o essencial desta começa na casa dos pais. Desde logo, sabe-se, é genética. Contudo, o carinho com que a criança é tratada e os vigorosos princípios que lhe inculcam – e quanto mais religiosos, abertos, tolerantes e ecuménicos melhor – são cruciais.

Destarte, a criança está destinada a ser um leitor insaciável, a querer saber, seja por viagens, seja pela companhia ou busca dos sabedores.

Como errar é conatural à humana condição, aquele que é dotado de insaciabilidade para o querer saber, qualquer que seja a modalidade deste, breve se dará conta de que viver é agir para melhor. Age, intervém.

Simples? – Nada disso. A realidade humana é uma infinita diversidade e ele não se tem mais que a si – e incompleto. A incomplitude é a mais imponente verdade que a cada um se impõe. Está nos antípodas do dramatismo, porque é penhor de progresso. Remontamos sempre a Delfos e Sócrates.

O empenhado conhecimento de si é o do mineiro na escuridão, nas profundezas da mina. Só por metáfora pode referir-se. Dessa determinação deriva uma luz espantosamente poderosa. É a luz sobre si, sobre os outros, sobre a relação entre si e os outros, sobre si, os outros e o Cosmos, uma luz, alfim, que nos conduz à Infinita Inteligência do Universo, ao Deus dos monoteístas. Assim, cultura é espiritualidade – mas uma espiritualidade supra-confessional.

Explico-me. A espiritualidade confessional pode ser cega. Tenho para mim que a grandeza alemã (baste dizer que, juntamente com a Grécia clássica, são as duas maiores potências filosóficas do Planeta – para não falar já da Literatura, da Música e das Belas-Artes germânicas), que a grandeza alemã, dizia, claro resultado de duas teologias em confronto, foi manchada – do modo indelével e potenciado que sabemos – precisamente por cuidar que a ímpar altura a que se tinha alcandorado já sabia tudo e nada de diverso era admissível. A “loucura” que os reiterados êxitos do século XIX engendraram desembocou no imperialismo que conduziu a 14-18 e, após o Tratado de Versalhes, ao nazismo.

É que a Cultura é, obviamente, alteridade, respeito pelo Outro.

Na acção, todos, digamos, nos enganamos. Mas ela é o preeminente complemento pela cultura que vem dos livros e da meditação.

Descartes, um dos espíritos maiores que a humanidade já produziu, sabia-o muito bem – mesmo que tenha frequentado o melhor colégio de então. Foi “para a vida” – e salvou a vida com a espada, quando, em trânsito da Suécia para a Holanda, ouviu os marinheiros entre si, à sua frente, em holandês, combinarem o modo como o deviam roubar e liquidá-lo. O filósofo, que sabia holandês, desembainhou a espada. É um modelo perene.

Outro é Malraux. O derrube de um governo legítimo por Franco era para ele inadmissível – e aí o temos na frente de combate. Tornou-se suficientemente sábio para declarar que sem espiritualidade nenhuma vida era possível.

Ou seja: tal qual disse Phillipe Ariès, «a Vida tem mais força que todos os princípios». Cultura é Vida – e a Vida é o Sagrado.

Guarda, 26-II-06

Por: J. A. Alves Ambrósio

Sobre o autor

Leave a Reply