Arquivo

Crónica de Turim

Theatrum Mundi

Três anos após o primeiro resgate da Grécia, a Europa debate-se hoje com a sua própria irrelevância e a desconfiança dos cidadãos. Três anos após a relutante ação que inaugurou, com a soberania condicional da Grécia, um novo modelo de protetorado europeu, ficou já claro que a crise é europeia; não é grega, portuguesa, irlandesa ou espanhola. A tragédia desta crise europeia começou no momento em que os dirigentes europeus, com os alemães à cabeça, imaginaram poder isolar a Grécia, criminalizando os seus políticos e submetendo o seu povo à regeneração de um ajustamento moral punitivo. Com o regresso da culpa coletiva, fenómeno que parecia exorcizado com a reconciliação do último pós-guerra e o acolhimento da Alemanha federal nas instituições da nova Europa, aconteceu que essa nova Europa se traiu a si mesma e cedeu aos mecanismos mais vis da história. A criminalização dos gregos como povo, reproduzida cada vez que outros dirigentes europeus sublinhavam (e continuam a sublinhar) que o seu país não é a Grécia, é um dos traços mais repugnantes de uma crise de Europa que se aprofunda com as políticas cegas de austeridade e coloca gerações contra gerações, cidadãos contra cidadãos, povos contra povos. Os momentos de marasmo na construção europeia foram comuns no passado, mas o que parece começar a caracterizar este momento definidor é uma espécie de inversão civilizacional. E a inversão não tem só que ver com a notória fragmentação da coesão no interior da Europa e do valor da solidariedade que lhe anda associado. Tem que ver antes de mais com o enfraquecimento daquele que é o bastião do paradigma europeu de sociedade, o estado social de bem-estar.

Mas afinal o que aconteceu com a Europa, que ainda nos alvores do novo século se envolvia numa discussão abrangente sobre uma Constituição, uma política externa e um exército comuns? O que aconteceu à famigerada estratégia de Lisboa que por essa altura apontava para a construção a médio prazo do espaço mais competitivo à escala global? Hoje começa a ser evidente que talvez a Europa tenha sido a principal vítima da globalização que promoveu nas décadas passadas, da globalização comercial mas sobretudo da globalização financeira, através da desregulamentação dos movimentos de capitais facilitada a partir da década de 1980. No mês passado estive em Turim, a primeira capital de Itália, onde assisti à peça de teatro “Viva l’Italia”, da reconhecida escritora Dacia Maraini. “Viva l’Italia” é uma peça sobre a unificação italiana da segunda metade do século XIX, que a desmitifica como caminhada triunfal e a apresenta antes como processo moralmente ambíguo, violento e carregado de erros históricos com projeção no presente. A discussão que se seguiu, com a presença da autora, levantou uma questão crucial, a do paralelo entre a unificação italiana e a construção europeia neste momento definidor. O atual momento é de um certo fim das ilusões sobre o caráter excecional do processo europeu. Ao contrário do que era esperado, e como é próprio da história, os processos de convergência social ou nacional são assimétricos, feitos de consensos mas também de violências difusas e finalmente produzem vencedores e vencidos. Com a certeza de que a história será escrita pelos vencedores para legitimar o regime de verdade por eles criado.

A marcha para a Europa federal, a acontecer, será triunfal para os vencedores mas deixará atrás de si um rasto de destruição, produto dos conflitos gerados neste momento de crise profunda que é um momento definidor. Definidor, por exemplo, para os povos sujeitos ao novo regime de soberania condicional que ameaça perpetuar-se.

Por: Marcos Farias Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply