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“Correu tudo bem!?”

Inscrição «irónica» quer alertar para a necessidade de uma nova mentalidade de protecção da floresta em Portugal

“Correu tudo bem!?”. Esta misteriosa interrogação está estampada desde sexta-feira na encosta recentemente ardida da serra que orla a barragem do Caldeirão, junto ao miradouro, e pretende ser uma chamada de atenção para «quem se farta de dizer nos meios de comunicação social que correu tudo bem, quando não o devem dizer porque a política da terra queimada não serve a ninguém e nunca pode correr bem». Francisco Viegas, proprietário da Quinta do Ronfrio à qual pertencem alguns terrenos em causa, está revoltado com o cenário desolado deixado pelas chamas e acha que é tempo de responsáveis políticos e técnicos mudarem de mentalidade. «Esse é que é o principal flagelo em Portugal», insiste, recusando a paternidade da «ironia», embora espere que a «carapuça sirva a alguém».

A inscrição apanhou de surpresa os habitantes da zona, mas o enigma alarmou-os ainda mais, havendo mesmo quem quisesse chamar as autoridades judiciárias para apurar as origens de tal mensagem. Mas a curiosidade popular foi mais célere e, entretanto, já começaram a circular pelo vale do Mondego e proximidades do Caldeirão os mais variados cenários e motivos da pergunta, dos mais lógicos aos menos inverosímeis. “Correu tudo bem!?”. Não, para Francisco Viegas, que já interpôs uma queixa no Ministério Público para apurar responsabilidades na origem do fogo [provocado por um automóvel que ardeu]: «As televisões estão cheias de gente contente, para quem tudo correu bem. Mas ainda que não haja feridos ou mortos e casas ardidas, isto nunca correu bem. São milhares de contos de prejuízos, é a Natureza, a Guarda, a região e todos nós que ficamos mais pobres», garante, recordando essa “espada de Damócles” que é o desaparecimento paulatino da camada do ozono. O proprietário estima terem ardido cerca de 50 hectares na sua quinta para um prejuízo calculado, «à primeira vista», em 350 mil euros (70 mil contos). «Esse é o meu prejuízo, falta o da Beira Interior, que não é contabilizável», lamenta. Para Francisco Viegas, que já reflorestou a zona ardida por três vezes desde 1986, o problema está na «má» formação de bombeiros, entidades responsáveis pelo sector das florestas e protecção civil, políticos e populações. «Este flagelo só se combate com uma mudança radical de mentalidades a vários níveis de responsabilidade, porque a marca da terra é tão importante como uma casa», sublinha.

IFADAP chumbou projectos de limpeza

Nesse sentido, considera que os bombeiros «agem mal quando só estão preparados para chegar aqui e dizer, como ouvi, vamos queimar isto tudo para não voltar cá outra vez», conta, agastado, defendendo que a mentalidade de um “soldado da paz” tem que passar a ser a de «ajudar» a salvaguardar a floresta. «Mas infelizmente, eles, do chefe ao mais pequeno, não têm interesse nenhum nisso, porque raras vezes vêm para apagar fogos», critica, ao denunciar o uso abusivo de contra-fogos em condições pouco aconselháveis. No entanto, defende que estes serão os menos responsáveis em toda esta tragédia, pois estão muitas das vezes mal equipados, mal formados e com uma «responsabilidade demasiado elevada sobre os seus ombros», refere o proprietário, para quem chegou a altura de encarar a realidade e meter mãos à obra, porque «assim a floresta não presta». E toda a gente é necessária para essa tarefa. «O que é preciso é que todos tomemos consciência e nos deixemos de dizer que correu bem, porque o que aconteceu correu mal dado os bombeiros estarem mal formados. Eles não têm culpa, o que está em causa é a sua formação: não podem vir para aqui com o espírito de queimar a floresta. Se querem fazer contra-fogo, façam-no no Inverno, que é a época ideal. Já é tarde fazê-los no Verão», garante.

De resto, Francisco Viegas não acredita em fogos postos, preferindo antes dizer que eles deflagram por falta de vigilância, de limpeza das matas e de ordenamento florestal. No entanto, no local do incêndio, o proprietário foi acusado por alguns bombeiros e sapadores presentes, segundo “O Interior” pôde testemunhar, de ter «giestas mais altas que os pinheiros e castanheiros plantados», um sinal claro de que o seu terreno não estava devidamente limpo. Viegas não refuta a acusação, mas atira as culpas para os técnicos do IFADAP: «Se o meu projecto de limpeza da floresta tivesse sido aprovado há três anos atrás, eu tinha limpo a floresta, pois não o posso fazer sozinho», explica, adiantando, por outro lado, que as giestas enriquecem de azoto, entre outras coisas, as árvores, contribuindo para o seu crescimento. Entretanto continua à espera da resposta para o projecto mais recente, entrado há dois meses. «Mas devem faltar mais não sei quantos documentos porque é sempre assim», ironiza o proprietário.

Luís Martins

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