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Convite ao nepotismo

O objetivo de descentralização em áreas como a saúde, a segurança e o ensino, com o reforço de competências dos municípios está outra vez na ordem do dia. Parece desejável decidirem-se a nível local questões tão importantes como essas, mas poderemos ter algumas hesitações sobre o assunto quando pensarmos que o pessoal necessário a essa descentralização passaria a ser recrutado a nível local. Ora o historial dos recrutamentos das autarquias não augura nada de bom.

Antes de mais, mostra a experiência, são garantidos os postos de trabalho dos familiares de quem manda no partido que está no poder. Depois, os dos militantes mais destacados. A seguir, os “da malta que ajudou na campanha”. Finalmente, os familiares destes todos. Quando damos por ela, já não há lugares para quem é suposto fazer o trabalho com competência, isenção e probidade. Se pensarmos que professores e médicos poderão passar a ser escolhidos com base em critérios partidários ou amiguismos, teremos de recear pela educação e pela saúde. Isto sobretudo se pensarmos que, em geral, as quotas dos partidos são preenchidas com incompetentes. Ou que quem investe a sério na sua profissão não costuma ter tempo para a militância partidária ou para a intriga política, o que é particularmente importante em médicos e professores.

Posto isto, dirão que vivemos num estado de direito e que temos de acreditar nas instituições e na lei. Pois. Vi concursos para recrutamento de pessoal, lançados por autarquias locais, em que o critério principal para a classificação dos candidatos era uma entrevista de dez minutos da qual não é guardado qualquer registo e se torna na prática inatacável. Imaginem que na avaliação curricular, baseada em dados objetivos, um candidato tem 14 e outro 12. Se na entrevista este for classificado com 20 e o outro de novo com 14, vai passar-lhe à frente. Quando o prejudicado impugnar o concurso em tribunal administrativo, vai ter pela frente anos de espera e um obstáculo difícil de ultrapassar, já que não vai ter forma de provar que o concorrente vencedor foi injustamente beneficiado na entrevista. Histórias destas, atenção, têm acontecido sistematicamente, de Norte a Sul do país e em municípios de todas as cores partidárias.

Regressemos ao início: é boa ideia colocar nas mãos dos municípios o recrutamento de professores e médicos (e enfermeiros, técnicos superiores, etc.)? A ideia não é boa, mas terá de ser executada, mais tarde ou mais cedo. Uma solução passaria pela ampliação dos poderes da CRESAP (comissão de recrutamento e seleção para a administração pública), ao menos para efeitos de fiscalização, mas a tarefa seria demasiado monstruosa para poder ser levada a cabo por uma comissão e acabaria por prejudicar os objetivos de descentralização pretendidos.

A única solução seria reformular toda a legislação sobre concursos, de modo a que o recrutamento de pessoal tivesse obrigatoriamente de se basear em critérios objetivos e facilmente verificáveis, mas os partidos não estão interessados.

Por: António Ferreira

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