Qualquer iniciado em História da Arte (e outras ciências da área das Humanidades), por mais humilde que seja a sua iniciação, sabe que o homem é uma extensão da terra (aliás, a Bíblia é clara e incoercível: “És pó e em pó te hás-de tornar”). Porque o homem é uma extensão da terra é que a religião – e a arte – foram uma no Egipto, outra na Mesopotâmia, outra na Pérsia,…; e uma afirmação tão aparentemente vulgar é, afinal, espantosa no seu conteúdo, transcendência.
Também sabe qualquer iniciado em História da Arte que precisa de dotar-se de dois conceitos operatórios apriorísticos para entender a realidade e distinguir o Verdadeiro do Falso: alteridade (pôr-se na pele do outro); projecção (sentir que a sua postura é a única válida).
Já o Cristianismo tinha séculos de existência quando da realidade do deserto arábico emanou outro monoteísmo, de que o profeta foi Maomé.
Sabe-se o que aconteceu aos dois. Cientes, perante si mesmos, de conterem – e serem – a verdade absoluta, vivendo em pura projecção, nada mais fizeram que afrontarem-se mutuamente. Da “Reconquista” no extremo sudoeste europeu às Cruzadas do Próximo-Oriente – logo iniciadas a partir de 1096 com a pregação da 1ª em Clermont-Ferrand –, de Lepanto até às “Torres Gémeas” nova-iorquinas (para sermos telegráficos), enfrentamentos e ódios têm sido o resultado da postura que considera o outro o “infiel”.
Tem havido, de há décadas para cá, tentativas de entendimento. Mas o que ocorre ao nível de muito escassos pensadores, nada tem que ver com a absolutamente esmagadora maioria. Muito jornalismo que se crê de larga visão refocila no erro.
Em 1986, após um longo auto-assédio sobre a presença portuguesa no Magrebe, decidi meter-me no “carocha”, atravessar o estreito de Gibraltar e visitar Marrocos. Entre o assento traseiro e o motor o espaço ia carregado de livros. Durante a permanência na bicha para entrar no barco que me levaria a Aiamonte, um guarda-fiscal amigo que conhecera anos antes, em V.R. de Santo António, tentou tudo por tudo para me dissuadir. Não o conseguiu e a minha “boa estrela” sempre foi para mim um facto. Sobretudo, insistiu em que não desse “boleia” a ninguém.
Em Tânger, o edifício da mesquita foi arrasado pelos portugueses, quando lá chegaram, para construírem o templo cristão e, uma vez expulsos, os muçulmanos destruíram este para, de novo, edificarem uma mesquita.
A primeira paragem, em Tetuão, coincidiu com um dia de mercado. Pelas ruas não faltavam excrementos de cabra e ovelha, mas o contacto com universitários com quem tomei laranjada – o álcool é proibido, como se sabe – foi uma muito agradável surpresa. Olhavam-me como se fosse um turista multi-milionário e eram de uma deferência extrema. Cultos.
No segundo dia, após Tânger, decidi dar “boleia” a um rapaz com ar de absoluto desvalido. Levava uma mochila às costas, ajoujado e pingando de suor. Lembrado do guarda-fiscal disse-lhe para pôr o saco no assento traseiro. Estudante de Direito, em Fez, vinha de trabalhar nas obras de Al-Hoceima, porto que estava em construção no Mediterrâneo. O pai expulsara-o de casa, porque, de 8 filhos, Hamid fora o único que ousara chamar-lhe a atenção para a enormidade de andar a bater à mãe. O pai, campeão de luta livre, embebedava-se com cerveja, visto que os judeus tinham construído uma fábrica em Casablanca.
Hamid ia para Rabat para casa de um tio. Era a 15 de Agosto e comemorava-se a festa do carneiro, em lembrança de Abraão. Mal a viagem começara e já estávamos em Arzila, onde havia uma importante exposição de arquitectura de casas construídas com adobes de terra e uma feira do livro. Evento sob os auspícios da ONU, o dignitário governamental marroquino chegaria quando percorríamos a feira.
Depois, enquanto visitávamos as muralhas portuguesas e casas junto ao mar, a dada altura Hamid bate a uma porta a pedir um copo de água fresca. Bebeu dois copos e o que ocorreu fez-me lembrar a pobreza bíblica.
Em suma: em 15 dias só passei 9 em hotéis. Nos restantes, comia e dormia em casa de familiares. Punham-me água de rosas nos lençóis para me perfumarem a cama. À despedida disse-me: “Sem ti sinto-me vazio”. Eu ia-lhe dando dinheiro para despesas.
Os muçulmanos são muito diferentes de nós? Aos nossos olhos, as cônjuges são meras fêmeas e criadas? Há escravatura? Uma pobreza bíblica e uma opulência sem freio? Haréns? Mutilações genitais? É uma teocracia?
Há anos, um camionista TIR marroquino estava perdido na VICEG e eu orientei-o. Sabendo que conhecia Marrocos perguntou-me: “E como vamos sair de tal miséria?”. “Ou mudam de religião ou não têm a mínima hipótese”, respondi-lhe.
As relações entre o mundo ocidental, enformado pelo Cristianismo, e o muçulmano, ou se fazem com a delicadeza dos sábios e humildes, em alteridade e voltados para o ecumenismo, ou as mais funestas surpresas não nos largarão. A começar pelos combustíveis…
Guarda 5-II-06
Por: J. A. Alves Ambrósio