Arquivo

Conto de Estio Estiolando

Observatório de Ornitorrincos

Era um fim de tarde naquele fim do Verão. Rodrigo, sentado na sua esplanada preferida, rabiscava o seu livro de apontamentos.

[Interrompo o leitor para explicar que o nome Rodrigo foi escolhido ao acaso, embora não seja de descartar a possibilidade de haver contribuições do meu inconsciente que me tenham levado a escolher este nome. A identificação do nome evita-me de qualquer forma ter de explicar ao leitor que quem está à esplanada não sou eu e também não é uma personagem do sexo feminino. Dito isto, prossigamos com a estória.]

Rodrigo, um publicitário não muito famoso nem muito rico, escrevia num caderno sem linhas de capa preta palavras soltas para a campanha de uma fábrica local de rolhas de cortiça. Este Verão tinha sido particularmente difícil para Rodrigo. A noiva tinha ido passar férias à Suécia e, ao contrário do que esperava, não se enrolou com nenhum sueco e voltou disposta a casar-se em Março.

[– Hei! O que é isto? – a narrativa é subitamente interrompida por Rodrigo, o personagem principal do conto, visivelmente agastado.

– Isto o quê? – perguntei – Estás a falar de quê?

– Da minha descrição. Não me podias arranjar uma vida melhor? Primeiro nem gosto muito de ser publicitário, isso é uma mania tua, só porque tiveste esse desejo quando eras adolescente. Depois tinha de ser anónimo e pobrezinho, não era? Como tu. És um invejoso, é o que tu és. Faz-me rico, pá. Ou sentes-te ameaçado por uma personagem de um conto teu? Dá-me um CLK. Põe-me dinheiro nas mãos. Aposto que o utilizo bem melhor do que tu. E depois a namorada. Quem te disse que eu quero ter uma namorada? Posso ser homossexual, não me perguntaste…

– Nem preciso, isso é uma prerrogativa do narrador – interrompi-o.

– Uma prerrogativa, o tanas! O Pérez-Reverte diz que as personagens têm uma vida própria. Ele não escolhe a vida delas. Cada uma…

– Ouve lá, isto não é um romance do Pérez-Reverte. É uma pequena estória para publicar num jornal – disse-lhe em tom severo. – Tenho uma sorte com estes tipos dos contos… – desabafei. – Por estas e por outras é que nunca escrevo ficção.

– Não escreves porque não sabes. Aquele princípio está todo errado. Pega lá no livro do David Lodge e vê lá no capítulo “Beginnings”. Vê se aprendes alguma coisa. E o meu nome, deixa-me que te diga…

– Tu és implicativo. Qual é o mal do nome?

– Foi escolhido ao acaso. Tu não tens jeito para isto, admite – retorquiu a personagem com um ar impecavelmente emproado.

– Eu não tenho é paciência para te aturar. Vou acabar com esta conversa imediatamente. Já vais ver como elas te mordem…

Com as devidas desculpa aos leitores, a narrativa prossegue de imediato.]

Rodrigo Palhotas, mau carácter e hipócrita, publicitário sem nenhuma imaginação, plagiador compulsivo, noivo de uma quarentona neurótica, estava sentado numa esplanada a desenhar falos num caderno sebento.

[Felizmente há coisas que só acontecem nos filmes e nos livros.]

De repente, sem que Rodrigo tivesse tempo para reagir, uma sonda espacial da NASA perdida da sua rota, despenhou-se exactamente em cima da cabeça de Rodrigo. Foi um grande azar e uma enorme coincidência, veio explicado depois na imprensa.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply