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Contar histórias – série B

Tresler

O que nos leva a ler uma narrativa da chamada “série B”, isto é, de autores dos quais não esperamos nada, sem nome firmado, com a expectativa provável de os compararmos negativamente com os consagrados? Exatamente isso, a força de serem secundários, de segunda divisão, a força de serem outra coisa, com menos universalidade e qualidade mas mais proximidade e cor local. Uma oferta numa autarquia ou associação, o lançamento de uma obra numa pequena cidade, um livro dos fundos folheado em meio minuto numa Feira do Livro e comprado com algum receio e depois… quase sempre a estante e o esquecimento. Algumas são primeiras obras, outras edições de autor sem nunca ganharem projeção para lá da região ou dos próximos do autor, quase todas condenadas ao destino de vender pouco. Desta vez, para “desenfastiar” dos “grandes”, pus-me a ler três destes livros nos tempos livres do Natal (“Café no centro da cidade”, de Carlos Adaixo; “Céu Pedrento”, de De Macedo; “Senalonga”, de Avelino Cunhal).

Porque é que continuam a aparecer tantos candidatos a escritor, vindos sobretudo do meio jornalístico e escolar? Porque é que a produção narrativa continua apesar de tudo pujante, suportando a concorrência dos media e dos clássicos? Por várias razões: porque o meio onde trabalharam lhes deu ferramentas de escrita ou oportunidades de edição; porque há sempre uma vaga ilusão de que ainda há histórias por contar (as nossas); pela (também ilusória) ideia de que alguém poderá descobrir em nós um talento promissor. O impulso de mostrar que se conhecem coisas de relevo sobre o meio local ou vivências novas sobre a própria profissão ou simplesmente sobre a vida é outro dos motivos de quem se abalança a escrever ficção, logo com carga autobiográfica ou testemunhal e com as personagens ali ao lado. E isso é um dos trunfos desta escrita. É também interessante sentirmos os escritores novatos a jogarem com os seus modelos de escrita, a procurarem o seu caminho, a quererem fazer qualquer coisa que não desmereça.

Os defeitos também ressaltam: a tentativa de tudo explicar e de deixar o leitor com a interpretação na mão parece fazer esquecer que na arte só metade da verdade se deve dizer, sendo a outra da ordem da criação do leitor; a vontade de fazer de uma obra o quadro de uma época pode torná-la demasiado ambiciosa, chinela demasiado grande para o nosso pé; noutras o que falha é o apuramento dos registos narrativos, sem se saber bem a posição e o ponto de vista de quem conta ou variando eles de tal maneira que isso desestabiliza a leitura; muitas vezes as personagens não ganham individualidade, falam todas igual, são redondas ou típicas e não se afirmam. Finalmente, é preciso dizer aos escritores com edição de autor que, tão importante como a conceção, é o cuidado no trabalho de revisão de texto, revisão a entregar a um terceiro que possa também ser conselheiro (atenção, Carlos Adaixo!).

O café Neves (Monteneve?) é o espaço do livro de Carlos Adaixo “Café no centro da cidade”. Um café dos anos 60, em que tudo é afinal como hoje, sendo o café o local dos desabafos, dos encontros, das confidências entre frequentadores de todos os dias. Um café entregue a homens, uma tasca urbana, por assim dizer, em que a sinceridade é a pedra de toque: tudo se diz, tudo se pode dizer, fala-se dos outros e abre-se o coração como no soalheiro entre mulheres. Uma Guarda do antigamente com pides e traições familiares e um véu diáfano de catolicismo conservador. O Porto dos anos 20 do século passado é o palco da novela “Epitáfios” na obra referida da autoria de De Macedo e uma sintaxe ligeiramente abrasileirada. Mas esta novela de 70 páginas consegue trazer até nós uma imagem crua da prostituição no Porto que nem sequer poderíamos imaginar: a desafeição e a dispensa consciente do amor escolhem-se através duma desejada segurança na vida, segurança efetivamente assumida como o maior valor, muito maior que o amor, este sim destrutivo. São também imagens do início do séc. XX as dos contos de “Senalonga”, de Avelino Cunhal. Era o tempo em que construir uma cloaca ou um urinol públicos (leia-se WC públicos) era um desafio lançado às mentalidades que defendiam que o local seria um coio de indecências e imoralidades. O tempo em que os habitantes das aldeias vizinhas vinham à vila com os seus queijinhos e figos lampos adoçar o bico dos funcionários das finanças ou da justiça para serem bem tratados. Onde é que eu já vi isto?

Estas histórias, estas edições, de tão particulares que são, de tanta ênfase do local, escapam às classificações e às comparações. Nenhuma classificação com estrelinhas resistiria porque seria comparar o incomparável. Mas o estudo da condição humana está lá. É pois um prazer que propositadamente não queremos submeter à ideia de valor.

Um magnífico 2014!

Por: Joaquim Igreja

Comentários dos nossos leitores
maria rosa mariarosaabreu@hotmail.com
Comentário:
Achei muito interessante a chamada de atenção para estes três livros que não li, mas que apetece ler depois desta descrição…bom trabalho e Bom Ano
 

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