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Confusão de Géneros

Razão e Região

Faz alguma impressão assistir a sinais políticos errados por parte de muitas forças políticas. Claro, o PCP e o Bloco de Esquerda fazem sempre o mesmo discurso a favor dos deserdados. Cumprem o seu papel. Cultivam o seu nicho de mercado eleitoral. Sublinham a sua vocação de protesto. Cumprem os seus rituais ideológicos. Não são surpresa para ninguém. Nem sequer para o PS a quem atacam como se fosse o seu adversário principal. Há muito que é assim. Até há uma explicação para isso: movem-se na mesma base eleitoral. Mas há nisto um pequeno problema: a consistência eleitoral destes dois partidos já é excessiva para uma mera lógica de protesto. Já é, pois, altura de, à esquerda do PS, alguém começar a fazer um discurso de convergência, nem que seja «paralela», com quem está a gerir o País com uma agenda de mudança e de modernização, sustentada no único modelo de desenvolvimento viável. O velho discurso ideológico e proclamatório de uma esquerda que só sabe protestar contra as injustiças deste mundo, contra este desgraçado vale de lágrimas, zangada com o estado sempre lastimoso do mundo, de dedo sempre em riste contra quem ousa fazer alguma coisa que não seja protestar, este velho estilo já não leva a lado nenhum e só contribui para alimentar a demagogia e o atraso. Faz impressão, por sua vez, ouvir da direita um discurso mais próprio dos «robins dos bosques» deste mundo do que dos defensores da ordem, dos impostos e do Estado em geral. Campeão desta confusão de géneros é um Paulo Portas que esgrime, com uma leveza admirável, argumentos contra tudo e a favor de tudo, mudando de pose consoante a posição. Ou o discurso do partido alternativo de governo em torno da reconversão do investimento estrutural em políticas de solidariedade. Preocupação que a actual líder parece que não tinha quando fez aumentar em cerca de três pontos percentuais a taxa de desemprego, durante o XV governo constitucional.

O que temos – da esquerda à direita – é uma imensa pregação moral em torno dos males deste mundo, como se de um dia para o outro, à velocidade de uma viragem da bolsa de valores, os portugueses se tivessem encontrado com uma economia deficitária e com problemas estruturais. Não me surpreenderia, por isso, ver, um dia, o principal partido da oposição dar loas ao deficit e à dívida pública que a seu tempo contraíram, em nome da solidariedade com os deserdados deste mundo, afinal, todos nós. Paulo Portas certamente aplaudiria e estaria pronto, mais uma vez, a participar na ladaínha, quem sabe se, desta vez, descobrindo no CDS a verdadeira vocação democrata cristã.

Com estes sinais o cidadão fica desorientado, não sabendo bem quem representa o quê. De repente, quando o sistema precisa de solidez como nunca, a oposição, da direita à esquerda, cavalga alegremente as dificuldades, os problemas, agarrando-se que nem lapas aos temas da agenda protestatária e mediática, sem cuidar de garantir alguma coerência ideológica.

Vivemos numa gigantesca confusão política de géneros. Nunca Portugal se sentiu tão pós-moderno como hoje, neste «caospolitismo» português emocionalmente tão intensivo.

Creio, por isso, que a descodificação do discurso político da nossa democracia tem de ser feita. Mas creio também que não pode ser feita nem por aqueles que o estão a fazer, os seus autores, quase todos agora transformados em comentadores políticos – e aqui está outra confusão de géneros – nem pelos comentadores profissionais, aqueles que vivem (e bem) do comentário feito à medida das audiências televisivas. E nem sequer daqueles que sendo jornalistas cultivam a secreta ambição de se transformarem em conselheiros do príncipe, mas acabando quase sempre por se transformar em vulgares «treinadores de bancada». O sistema está como que afunilado nuns tantos políticos e comentadores que em vez de descomprimirem o sistema o carregam de tensão, tornando cada vez mais difícil o exercício sério da política institucional.

É claro que a nossa democracia, parecendo já muito madura, ainda é muito jovem. É claro também que persistem muitas dificuldades estruturais. E que a dependência estreita dos ciclos da economia mundial também nos torna mais vulneráveis. Mas também é claro que os progressos feitos nas última décadas são fantásticos. Mas não será com um «tabloidismo» político desbragado, feito à medida dos «telejornais», que poderemos consolidar e aprofundar a nossa jovem democracia.

Por: João de Almeida Santos

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