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Carros com memória

Comprar um carro que já atropelou gente, ou que, conduzido por alguém, chocou numa parede, ou até que teve um dia uma árvore sobre ele, ou que viu perecer o condutor de dor no peito, ou ainda daqueles que nunca cumpriu uma viagem longa, isso sim é má sorte. Eu acho que nunca compraria um carro com memória. Tinha medo dos burriés no volante – bem, isso lava-se, dirás tu – ou medo dos restos de amor no banco traseiro – bem, lá estás tu, dirás de novo – ou nojo dos pelos dos cães do caçador – é sempre a mesma coisa, insistirás. Mas há a memória dos mortos, a memória dos acidentes, a memória dos roubos – isso não se apaga. Claro que não, mas na chapa não fica história – e tens razão. Eu tenho este pudor da memória dos carros. O carro do Idi Amin, o carro do Salazar, o Ferrari do Enzo, o carro do Aldo Moro, tudo isso vai para museus porque representam a história. Mas se não fixam memória, porque os guardam então? Para mim, entre aqueles ferros e vidros, borrachas e pistões há histórias de quem lá andou. Para mim, repito, os carros deviam trazer a ficha dos donos anteriores, deviam falar dos predecessores no volante, se eram limpos, se os usavam na má vida, se estiveram em parques da polícia, se mataram gente, se faziam fumo a rodos, se deixaram os donos apeados na Algarve. Era um negócio mais justo se conhecêssemos a memória. Carro que tenha dois donos que abriram a porta e morreram de enfarte? “Vade retrum” que aí não entro. Carro que fez duas vezes “aquaplaning”? Não vou! E com ar de parvo me fico e não compro, não entro e não viajo.

Por: Diogo Cabrita

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