Arquivo

Câmaras recheadas

Observatório de Ornitorrincos

O Verão de 2010 será sempre lembrado como uma época de acontecimentos extraordinários. Carlos Queiroz, mais resistente que qualquer líder do PSD, não sai nem à paulada. Augusto Santos Silva, mais trauliteiro que Bruno Alves, não se cala nem com fita adesiva. José Rodrigues dos Santos, mais prolífico que D. Duarte Pio, não se lê nem com 40 graus.

Mas o feito mais espectacular, quase da ordem do milagroso, foi uma boa notícia vinda do Governo, após vários anos de desentendimentos entre mim e o engenheiro Sócrates. Para que não haja equívocos, perceba-se que o Primeiro-Ministro tem comigo uma relação semelhante à que as raparigas tinham comigo no liceu: não fazem ideia de quem eu seja. Mas eu tenho desenvolvido algumas embirrações com o líder do Governo e finalmente tudo isso acabou. O Primeiro-Ministro mandou implementar uma medida que só peca por tardia: as câmaras de vigilância nas escolas secundárias. E peca por tardia porque muito desejei eu que houvesse câmaras de vigilância durante a minha adolescência nos idos de 80.

Não julgue o leitor que desejava as câmaras para que os brutos da escola – naquela época não havia “bullying”, apenas matulões e repetentes – me deixassem em paz. Na verdade, os brutos da escola eram bastante carinhosos comigo (tratavam-me por “toininho”) e mostravam alguma admiração intelectual (obrigavam-me a deixar copiar nalguns testes). As câmaras de vigilância deveriam ter lá estado para provar à minha professora de Física que conhecer a Teoria da Relatividade aos 15 anos não era uma característica apreciada pelas raparigas da mesma idade. Na verdade, não sei o que “as raparigas de 15 anos” apreciavam, não conhecia assim tantas. O que me lembro é que a Margarida não apreciou e a professora de Física nunca chegou a saber. As câmaras de vigilância deveriam ter lá estado para mostrar à Presidente do Conselho Directivo as condições difíceis em que se fazia o jornal da escola na sede da Associação de Estudantes, onde mal cabiam a máquina de escrever e eu, o presidente da AE e a sua namorada semanal. Com estas provas gravadas em vídeo, talvez a professora me tivesse arranjado uma sala para mim ou um quarto para ele. Não se pense que é fácil escrever sobre o horário da cantina enquanto outro ser humano sofre ao nosso lado por não conseguir desapertar um soutien. (Imagino que muitos jornalistas passem por isto ainda hoje. É por isso que considero o jornalismo uma profissão bastante nobre.)

José Sócrates e eu estamos finalmente de acordo sobre as vantagens da tecnologia. Também eu sou um adepto incondicional das câmaras de vigilância, nomeadamente em provadores de lojas de roupa, balneários femininos e quartos de dormir de americanas desvairadas. O Ministério da Educação podia até permitir às escolas secundárias que organizassem websites com as imagens das câmaras de vigilância para gerar receitas próprias que depois serviriam para comprar materiais didácticos indispensáveis como livros, filmes e preservativos. Se o Primeiro-Ministro necessitar de um director-geral para organizar uma estrutura de coordenação pode aproveitar esta minha cessação de hostilidades para me nomear antes que mude o Governo ou chumbe o orçamento.

Espero bem que o Governo não ceda aos protestos daqueles que dizem que as câmaras são um atentado às liberdades. É bom não esquecer que as câmaras serão instaladas em escolas secundárias e já se sabe o mal que a liberdade faz a adolescentes e professores.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

Sobre o autor

Leave a Reply