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Brumário

1. Vejo muita gente alarmando o auditório com os perigos do “retorno do fascismo”. Os sinos a rebate funcionam exactamente como as advertências da visita do “papão” ou do “homem do saco”, presentes no imaginário infantil. Os zeladores desses perigos inomináveis são, quase sempre, pontífices do regime, que outorgaram a si próprios uma proeminência moral muitas vezes baseada na lenda e na dissimulação. Todavia, a questão não é despropositada. Bem pelo contrário. Nas sociedades do “espectáculo difuso” (Debord) em que vivemos, o (neo)fascismo dispensa o Estado totalitário, mas não o totalitarismo. Passa bem sem a censura, mas não sem o medo. Não pretende restaurar uma ordem pré-iluminista, mas uma utopia eugénica, onde as diferenças são subtilmente anuladas. É-lhe indiferente a submissão, mas não floresce sem o culto narcísico. Não nega as liberdades, mas administrativiza-as.

Neste cenário hedonista, o Poder decide que somos todos iguais. Pois a ânsia do consumo é uma ânsia de obediência a uma ordem não enunciada. Pois nunca a diferença foi tão aterradora como neste período de tolerância. O Estado sabe tudo acerca dos cidadãos, dado que é no seu interesse que o faz. Dá-lhes bons conselhos, protege-os do risco, da tentação, do vício. Sufoca-os com o abraço do urso. O preço desta vigilância assistencial é o controlo. As investidas fiscalizadoras da ASAE, o espectáculo hollywoodesco das máscaras e das correrias tem fins de prevenção geral para toda a nação. É o papão que faz tremer de medo um país pré-higiénico, pré-normalizado. Tudo isto para acabar com a chamada economia paralela. Aquela que não gera tributação. Tal como a obra de Kafka demonstra, o verdadeiro prazer do esbirro ou do polícia está em incomodar os outros por razões fúteis. Não por motivos legítimos, palpáveis, reconhecíveis. É precisamente a gratuitidade da ameaça, o tom aleatório do medo, o que torna o totalitarismo tão absurdo quanto real.

2. Não sei até que ponto a poesia desagua no poema. Ou é sorvida por ele, deixando um eco, ou uma pegada, que alguém se esforçará por seguir. Ou como, no limite, o pode dispensar. Não por comodismo, é claro. Ou como resultado de uma abdicação. Ao invés, por uma tenaz exigência. A qual, afinal, nada pede. Um atalho que esteve sempre à vista, mas nunca se olhou. A poesia é também uma linha, um murmúrio cuidadosamente revelado. Nunca nos abandona, enquanto o soubermos escutar com audácia. Talvez por isso, a poesia está presente em quase tudo aquilo que escrevo. Um ingrediente secreto a que sou incapaz de resistir. Excepto quando prevalece o dever da objectividade imaculada. E a prosa fica enxuta de qualquer leitura dúbia. Abre-se, então, um breve e reparador parêntesis para a poesia. Cuja austera depuração exercita e agiliza o escriba. Em tudo o resto, ela permanece, insinuando-se, nas entrelinhas, ou na arena, defronte do touro.

Há pouco, descobri que esta presença indelével não é tanto uma inescapável marca pessoal, ou uma simples extravagância semântica, como um precioso recurso estilístico. E de que maneira? À narrativa cabe orientar o olhar do leitor para determinado objecto, reflexão ou acontecimento. Todavia, a simples “intromissão” de um recorte poético pode alterar a forma como o texto se deixa ver. Algumas palavras que não deviam lá estar abanam a raiz do mistério. Semeiam a incerteza. Obrigam a olhar para o texto de outra perspectiva. Nomeiam o que, não estando lá, é preciso conhecer, para poder ignorar. E só então o leitor, depois de ter lido, começa a ler.

3. Gostei de ler a entrevista de Álvaro Amaro a este jornal, há 3 semanas atrás. Mesmo descontando o exagero de algumas afirmações e a ausência de perguntas incómodas do entrevistador. O actual presidente da Câmara dá algumas informações preciosas acerca dos buracos negros, das trapalhadas e do nepotismo herdados do consulado socialista. E da forma como alguns desses embaraços foram resolvidos. De um modo geral, é difícil negar que os serviços da Câmara ou dela dependentes funcionam melhor. Em muitos casos, há respostas em vez de requerimentos arquivados ou esquecidos. Nota-se empenho onde antes havia um profundo desinteresse. O saneamento financeiro da autarquia, tarefa hercúlea, prossegue a um ritmo aceitável. Gostei sobretudo da determinação em solucionar o imbróglio do Hotel de Turismo. Adivinhando-se que, para Amaro, este é um lugar de passagem, parece ter compreendido também que, tendo conquistado uma fatia apreciável do eleitorado, nem por isso essa apreciação positiva se estende às elites. Mesmo sabendo-se que, falar em elites, na Guarda, redunda, no mínimo, num simpático eufemismo. Sendo, em rigor, uma hipérbole. Talvez Amaro ganhasse em perceber que essa suspeição tem origem, em grande medida, no populismo que o ensombra. Que se nota sobretudo no seu discurso em relação à cultura. A qual circunscreve à criação de “eventos”, ao controle dos custos e a um ilusório aumento dos espectadores, ou do público em geral. Deixando de fora o estímulo aos criadores locais fora da nomenklatura, as colectividades fora do círculo dos “eleitos” e, sobretudo, os projectos consolidados no tempo.

Por: António Godinho Gil

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