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Bom ano e boa sorte…

Theatrum mundi

Começo com a adaptação um pouco abusiva da célebre frase com que o jornalista Edward Murrow terminava os seus programas de rádio (“Boa noite e boa sorte”), nos tempos do confronto com o senador McCarthy, nos anos 1950. A uma semana do início da presidência Obama nos Estados Unidos, apetece dizer “Bom ano e boa sorte”, ainda que por motivos diferentes dos implícitos na saudação de Murrow. Há um certo sentimento de urgência nela, na original como na que dirijo agora a Barack Obama, mas também o reconhecimento das dificuldades com que se depara o interlocutor. A uma semana do início do seu mandato, e com escassas duas semanas de ano novo, Obama terá já percebido que a herança de George W. Bush é ainda mais pesada do que imaginava, o que não deixará de tornar mais difíceis as opções já anunciadas, de política doméstica e externa, para estes momentos excepcionais. Não é um acaso que a presidência Bush tenha sido já considerada como a mais desastrosa dos últimos cem anos nos Estados Unidos, e os danos causados à imagem do país no estrangeiro, assim como no domínio das opções de política económica, fazem com que não haja mais remédio senão desejar “Bom ano e boa sorte” ao novo inquilino da Casa Branca. Estes são desejos que reconhecem, ao mesmo tempo, a bondade das suas intenções e os condicionalismos a que as boas intenções sempre estão sujeitas, especialmente na prática política. Obama comprometeu-se a fechar a base de Guantánamo no curto prazo e até declarou que o seu estado não torturará prisioneiros; ao mesmo tempo, e em nome de um certo consenso bipartidário –uma espécie de bloco central dos interesses, do outro lado do Atlântico – recusa investigar eventuais abusos de poder e violações de direitos ocorridos nos últimos oito anos. Obama chega à Casa Branca com a intenção de mudar Washington, mas o pragmatismo aconselha-o a olhar em frente e não remexer no passado.

No plano externo, os desafios avolumam-se, mas também aqui acabará por se impor um certo pragmatismo que não pode deixar de transformar o desastre Bush em desculpa útil. A ofensiva israelita sobre o Hamas em Gaza é disso um bom exemplo. Ao abrigo da justificação justificável de que os Estados Unidos só têm um presidente, e de que ele ainda é, até ao dia 20 de Janeiro, George Bush, Barack Obama escusou-se a comentar a ofensiva israelita. Obama é apenas o presidente eleito, e o problema está mais no longo prazo de transferência de poderes do que na sua atitude cautelosa. Aliás, esse período foi aproveitado por Israel para tentar suprimir o problema do Hamas e da utilização de Gaza como base de ataque ao sul de Israel. Embora o apoio ao estado judaico goze de consenso alargado nos Estados Unidos, Tzipi Livni sabe que tão depressa não poderá contar com uma administração americana tão favorável às suas opções estratégicas – quaisquer que elas sejam – sobretudo num momento de transição e em que nem sequer é já necessário fazer o esforço de mostrar equidistância entre as partes em conflito… As contínuas declarações só foram mitigadas pela tímida abstenção no Conselho de Segurança da ONU. A verdade, contudo, é que a comunidade internacional espera que Israel suprima de vez o problema, rapidamente, com o mínimo de dor para os inocentes, com o mínimo de danos colaterais… mas reconhecendo que as vantagens prometidas tornam aceitável a dor e os mortos. A dor e os mortos tornam-se aceitáveis porque o fim do Hamas é um horizonte desejável para essa comunidade internacional que inclui Barack Obama, a Europa, a Fatah do presidente palestiniano refém na Cisjordânia, o Egipto e generalidade do mundo árabe. Depois, aliviados pela supressão do problema (e reconfortados nas convicções morais porque clamaram, a tempo, contra o avolumar da dor e da morte) sentar-se-ão à mesa das negociações. Uma vez mais.

Por: Marcos Farias Ferreira

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