Arquivo

Bolos

“Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados ‘madalenas’, que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levasse à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas, no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim.” Ao escrever estas palavras tão familiares e caseiras, Marcel Proust acabava de transformar a madalena no bolo mais célebre da história da literatura. Mais: dava-lhe a vida de uma personagem, de um lugar, um sentimento, um desejo, um sonho. Tornava-a origem da memória involuntária, pedra filosofal, talismã, elixir, fetiche, filtro mágico, rito de passagem. Fazia dela uma máquina de viajar no tempo e uma fórmula para ressuscitar Lázaro. Transformava um objecto em sujeito. Concedia uma aura ao vestígio. Quando esta madalena se tornou o eco de uma outra antiga, o passado fez-se presente e o presente, passado: “E Combray inteira mais os arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá.”

Um livro sobre pastelaria agora publicado foi-me a madalena de Proust visual. Ao passar as suas páginas pesadas das imagens dos bolos que fizeram a nossa infância ansiosa, vi-me nas ruas da Baixa com a minha pequena mão raptada pela minha mãe e levada por um ímpeto que corria como um vento. Andávamos às compras. Fosse qual fosse o destino da nossa expedição, chegava a hora de ir à pastelaria em busca do meu paraíso. A escolha dos bolos demorava muito tempo e era antecedida de diálogos socráticos com o empregado, até que a maiêutica acontecesse. A minha mãe tinha artes de detective para saber se os bolos eram frescos e quotidianos. Interrogava, indagava, observava, inspeccionava, recolhia provas. Esta Miss Marple da vida tem hoje em mim a Agatha Cristhie que lembra ao seu escutar estupefacto e incrédulo essa antiga perícia para a descoberta. Fosse uma madalena ou um rim, um jesuíta ou um bom-bocado, um pastel de nata ou um garibaldi, uma bola de Berlim ou um guardanapo, um palmier coberto ou uma pirâmide, um babá ou uma brisa, aquele bolo, acompanhado de uma laranjada, dava-me um voo mais leve e instantâneo à volta do mundo do que aquele que, anos depois, haveria de experimentar com o álcool.

Neste Fabrico Próprio – O Design da Pastelaria Semi-Industrial Portuguesa, da autoria dos designers Rita João, Pedro Ferreira e Frederico Duarte, encontrei o dicionário dos meus desejos inocentes. Percorri-o como quem visita um álbum de recordações, um manual de instruções, um compêndio de sociologia. Os bolos também têm classes sociais: um duchesse e um éclair são de mais elevada condição do que um bolo de arroz ou uma rocha. E a fotografia do mil-folhas torna-o tão próximo que me apetece comê-la. Que querem?! O ser humano perde a cabeça quando avista aquilo que dá aos seus sentidos um destino. É por isso que, como ensinou um velho professor de Viena, a civilização é um instável edifício fundado sobre a repressão do instinto. Com as suas montras vigiadas de vidro, as pastelarias são disso um memorando melancólico e infalível.

Por: José Manuel dos Santos

Sobre o autor

Leave a Reply